quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A cápsula do tempo



Desligou o abajur e, assim que colocou a cabeça no travesseiro, começou:

- Vi uma notícia no jornal da hora do almoço.


Ninguém responde. Depois de alguns segundos:

- Ouviu o que eu falei?

- Hã?

- Por que você tá em silêncio?

- Porque a gente vai dormir. Ia, pelo menos.

- Vi uma notícia na TV.

- O que tem?

- Dizia que acharam uma cápsula do tempo.

- Legal.

- Não quer saber o que é uma cápsula do tempo?

- O que é uma cápsula do tempo?


A pergunta soou cínica. Ficaram calados.

- Você podia, pelo menos, fingir mais interesse nas coisas que eu digo.


E voltaram ao silêncio por mais alguns intermináveis segundos. Depois:

- Lá em 1800 e pouco, alguém colocou um monte de coisa em uma caixa e enterrou.

- Hã?

- A cápsula do tempo.

- O que tem?

- Você não queria saber o que era? Estou te explicando. É uma caixa com várias coisas antigas, jornal, moeda, que alguém enterrou lá em 1800 e pouco.

- Ah, tá. Pra quê?

- Pra alguém encontrar no futuro.

- Ah, tá. E encontraram?

- Foi exatamente essa a notícia que eu vi na TV.

- Coisa mais besta.

Continuaram deitados de barriga pra cima, como se estivessem se estudando. Até que ela tomou a iniciativa:

- O que você colocaria?

- Pode ser qualquer coisa?

- Sei lá? Acho que pode.

- É igual aquilo de “o que você levaria para uma ilha deserta”?

- Claro que não! Você não vai levar nada. Vai mandar para o futuro.

- Tá bom.

- Quer que eu repita?


Ele não responde e ela pensa que pode ter sido estúpida demais. Experimenta:

- Dormiu?

- Não. Tô pensando.

Ela tem certeza de que é mentira e que, na verdade, ele ficou irritadinho. Até que escuta:

- A camisa da Portuguesa!

- Você colocaria uma camisa da Portuguesa na cápsula do tempo?

- É!

- Por quê?

- Porque sou torcedor.

- Mas, por que alguém vai querer saber disso?

- Pra saber que existiu um time dessa grandeza no passado.

- E que o único torcedor mandou a camisa pro futuro?

- Boa noite...

- Por quê?

- Você pergunta, quando eu entro na brincadeira, você não aceita. E ainda tira sarro.

- Não tô tirando sarro. Só queria saber o porquê de mandar uma camisa da Portuguesa pro futuro. Mas, tudo bem. Já explicou.

Silêncio profundo. Depois de um tempo:

- Insiste na camisa da Portuguesa?

- Insisto.

- E o que mais?

- Tem que ter mais?

- Já que você quer mandar algo para o futuro, aproveita a viagem.

- Colocaria um celular.

- Pra quê? Pra mostrar como os torcedores da Portuguesa se comunicavam em 2012?

- É.

- Muito óbvio.

- Já sei. Eu colocaria uma foto sua, escrito atrás: “por quê?”

- Por quê?

- Pro pessoal de Massachusetts estudar esse fenômeno. É impressionante. Tudo você pergunta por quê!


Ela parece ter sentido o golpe. Levou algum tempo para se recuperar. Quando conseguiu, veio com essa:


- Não quer saber o que eu levaria?

- Pode ser.

-‘Pode ser’? Tá irritado comigo?

- Não. Só estou ficando com sono.

- Você dormiu à tarde, não devia estar com sono...

- O que você levaria? – fala ele rapidamente, para cortar a investida dela.

- Talvez, um relógio. Um relógio e uma esponja de lavar louça.

- Não acredito que você contou essa história toda de cápsula do tempo só pra dizer que eu não lavei a louça do domingo?

- Só? Se você acha pouco, posso colocar na minha caixa do tempo o pote d’água do cachorro e uma sacola de lixo.

- Desculpa, eu esqueci...

- Lembrei de outra coisa que eu colocaria na minha cápsula do tempo. Uma foto sua. Escreveria atrás: “Esqueci” e “só por isso?”.

- Pra que isso?

- Pra lembrar pras mulheres do futuro que, no passado, tinha cara folgado assim igual você.

- Como assim?

- Simples assim.

- Mas, em que futuro?

- Futuro... Pra frente... Em breve...

- O que você tá querendo dizer com isso?

- Que, no futuro, não vai ter mais espaço pra cara folgado igual você.

- Como assim não vai ter espaço? Por que você tá falando essas coisas? O que você tá querendo dizer?

- Nossa, quanta pergunta... Tá me dando um sono danado – termina a frase e ensaia um bocejo.

- Sono por quê? Não vai me deixar falando sozinho, né?!


Ele adivinhou. Ela se vira para o lado de fora da cama e ensaia um ronco. Volta, de repente:

- Tava pensando aqui, podia mandar sua foto pro pessoal de Massachusetts também. Pra eles estudarem alguns fenômenos como a audição seletiva e o esquecimento temporário.


Antes de ele pensar em responder, ela já ensaiava o ronco novamente.


Como num suspiro derradeiro, ele tenta a última cartada:

- Te amo!

Ao que recebe o golpe de misericórdia:

- Por quê?


Nocaute!

4 comentários:

Anônimo disse...

Soube transcrever muito bem o boxe verbal travado nos relacionamentos. O problema desse tipo dea luta é quando não acaba no primeiro round. kkkkkkkkk

Victor Farinelli disse...

A Carol já falou tudo, apesar de que queria ressaltar o final, que foi excelente, inclusive com uma certa crueldade com o cara e tal. Mas enfim, é por essas e outras que eu nunca deixo de lavar a louça, prá esquivar alguns golpes :D

Mauro Castro disse...

UFC verbal, Caroline.

Há braços!!

Elias disse...

Muito boa Maykon. Ri demais...parabens muleque!É bem isso mesmo, impressionante...