terça-feira, 27 de dezembro de 2011

Ho ho ho

O plano era o seguinte:

- Você sai do apartamento, conta até dez e toca a campainha; Você grita bem alto ”olha o Papai Noel”; e você leva as crianças pro quarto e distrai elas.

- Mas, como? – tentei reagir.

- Te vira – ordenou minha irmã.

Lá fui eu. Distrair dois sobrinhos na noite de Natal. Um casal de gêmeos. Cinco anos e meio. Arrastei a dupla para o quarto, a contragosto, tomando o devido cuidado de deixar a porta aberta para que o som da campainha pudesse ser ouvido.

Antes que eles se perdessem em meio às Barbies e bonecos dos Backyardingans, corri até a janela, fiz minha melhor cara de espanto, e perguntei: “O que é aquilo?”

Os dois vieram meio sem vontade, mais para dar atenção a um tio carente do que por curiosidade própria.

A sobrinha:

- O quê?

Eu:

- Ali, em cima do prédio.

- O que tem?

- Mexeu ali. Um negócio vermelho.

O sobrinho:

- Cê ta maluco, ti...!

Percebi que ele foi interrompido por um cutucão dado pela irmã.

- Aiiii... ela me bateu.

- Bati nada.

Eu, sem dar tempo aos dois:

- Ó lá: mexeu de novo.

Antes que ele dissesse novamente que eu estava maluco, ou vendo coisa, ela gritou:

- Eu vi! Eu vi! O que é aquilo, tio?

- Só pode ser o Papai Noel – garanti.

O menino deu as costas e ameaçou pedir socorro ao Pablo e a Uniqua. Ela o segurou.

A coisa estava demorando. Não é possível que se levasse tanto tempo para sair pela porta da cozinha, jogar os presentes no capacho, tocar a campainha, e alguém gritar a plenos pulmões, no meio da sala: “Olha o Papai Noel!”.

Confesso que a encenação me irritou desde o princípio. Nem só por estar incumbido da parte mais trabalhosa do plano: a de dobrar duas crianças muitas vezes mais espertas do que eu... Mas, por achar uma perda de tempo terrível tentar iniciá-las em tradições impossíveis de se acreditar hoje em dia. Os adultos se esquecem que existe internet. Nenhum Papai Noel consegue se manter intacto no imaginário popular com um computador ligado... Nem morando no Polo Norte.

Percebo alguém entrando no quarto. Minha mãe.

- O que vocês estão fazendo?

Respondi rápido:

- A gente ta vendo uma coisa vermelha num trenó em cima daquele prédio.

- Jura? Meu Deus, que legal!!! Onde está? O que vocês acham que é?

Minha sobrinha:

- Tá ali, vovó... ta vendo?

- Tô, sim... que lindo... É o Papai Noel! Ele veio com as renas! Olha o trenó dele como é bonito!

Enquanto se divertiam com os últimos vestígios do bom velhinho, comecei a perder a paciência. Até que deixei escapar, aos sussurros:

- Mas que demora do cacete. Cadê esse bosta desse Papai Noel?

Imediatamente, senti um misto de cutucão e beliscão:

- Xiii!

Olhei para minha sobrinha, ciente de que acabava de estragar o Natal, xingando um de seus maiores símbolos. Imaginei ela entrando na sala, chorando, dizendo que eu xinguei o Papai Noel de bosta.

Mas, ela simplesmente sussurrou por entre os dentes:

- Tio, cuidado... a vovó ainda acredita nele!

Calei a boca e fixei o olhar no trenó imaginário.

Minha mãe:

- Cê viu, filho? As renas são tão bonitinhas...

Não precisei responder. No mesmo instante, tocaram a campainha e escutei um grito: “Olha o Papai Noel!”.

As crianças respiraram fundo, minha sobrinha me lançou um olhar de cumplicidade, e os dois entraram em cena gritando.

domingo, 27 de novembro de 2011

O cara do Face

No shopping, puxei o livro da mochila e percebi que estava sendo observado. Mal virei a primeira página e ela se aproximou. Devia ter uns 20 anos. Ficou se contorcendo, tentando ler o nome que estava na capa. Conseguiu:

- Ai, que legal...

- O que?

- Ele tem livro?

- Como assim?

- O Caio tem livro...

- Que Caio?

- Esse que você tá lendo...

- Tem... vários... um dos maiores escritores do Brasil...

Ela não acreditou muito.

- Caramba... achei que ele era só o cara do Face.

- Cara do... ?

- Face... Facebook... internet... cê tem, né?!

- Tenho, tenho...

- Ele também.

- Quem?

- O Caio... tem um perfil todo fofo... Ele escreve cada coisa bonita.

- O Caio?

- Claro, pô. Não é dele que a gente está falando?!

- É que é impossível ele ter perfil.

- Por quê?

- Ele morreu...

- Impossível ele ter morrido!

Chegamos num impasse. Ela virou para o outro lado, como que digerindo a informação. Depois de um tempo, indignada:

- E quem atualiza o perfil dele, então?

- Ele é que não é.

- Cê ta brincando... não deve ser o mesmo... morreu de quê?

- AIDS.

- AIDS??? Então, ele era velhão?

- Velhão?

- É, ué! AIDS não é aquele negócio que dava nos anos 80?

Novamente, um impasse. Dessa vez, eu é que virei para o outro lado para digerir a informação.

- Lê um pedaço aí pra mim.

- Qualquer um?

- É.

- Lá vai: “Aquele negrão, sabe aquele negrão de cabelo rastafári que fica sempre ali no Quênia’s Bar? Aquele que vende fumo, diz que tem vinte e cinco centímetros, já pensou? Isso não é uma jeba, é uma jibóia. Até vinte agüento numa boa, até o cabo. Vinte e cinco não sei, tenho até medo. Pode rasgar a gente por dentro, sei lá”. *

- Ele escreveu isso?

- Sim.

- O Caio?

- Claro, pô. Não é dele que a gente está falando?!

Ela se levantou, indignada:

- Ele escreve coisas fofas, não isso aí. Ele fala de amor, esperança, sorriso. Coisas pra valorizar a gente. Ele tem frases que se encaixam em todos os momentos da vida da gente.

- Isso é Minutos de Sabedoria, não Caio Fernando Abreu.

- Minutos de quê?

Reparei que outra garota tinha se aproximado. Resolveu entrar na conversa:

- Que foi?

- O cara aí ta dizendo que conhece o Caio.

- Que Caio?

- O do Face!

- Ah, tá... prefiro a Clarissa...

- Que Clarissa?

- Ah, sei lá. Acho que é Espectro.

- Não é Clarissa, é Clarice, sua burra!

Começaram a tirar sarro uma da outra e se foram sem dar tchau.

Da próxima vez que estiver em público, puxo um Dostoiévski.

Duvido que ele também tenha perfil fofo no Face.

* O trecho foi extraído de uma frase da personagem Jacyr, do livro Onde Andará Dulce Veiga?, publicado em 1990

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Hã?!

Achei minha ideia brilhante e quis contar pra ela na mesma hora.

Seria o fim de boa parte de nossos problemas conjugais.

- Amor, tive uma ideia.

- Hã?!

- Tive uma ideia.

- Desculpa, não entendi.

Esse era o problema: não compreendíamos muito bem o que o outro dizia. Qualquer frase dita depois de alguns segundos de silêncio e que nos pegasse meio de susto resultava em terríveis “Hã?!” “O quê?!” “Que foi?”

Mas, minha ideia era muito boa. Muito mesmo. Resolvi continuar. Dessa vez, separando as sílabas.

- Ti-ve uma ide-ia pra vo-cê en-ten-der o que eu di-go.

- Mas, eu entendo. Quem não entende é você.

Imediatamente, mandei um:

- Oi?

Hummm... fechou o tempo. Ela achou que foi de propósito. Pra provocar.

Fez um silêncio profundo. Olhou pra cima, bufou, contou até dez, pensou em falar novamente, tomou o ar e... desistiu.

Por incrível que pareça, depois de toda essa sequência compreendi o que ela disse.

Às vezes, acontece. A ficha cai como que por encanto, diante de tanta ameaça.

- Se eu não entendo é porque você fala baixo – tentei me defender.

Ela concluiu, triunfante:

- Ahhh, então você tinha entendido o que eu falei? Tá vendo como é? Você só ouve o que quer!

Confesso: o “Hã?!” e o “Oi?” são automáticos, quase uma muleta.

Depois de ouvir qualquer coisa, deixo escapar um “que foi?”, “oi?”. Mas, não é por mal. Cheguei, inclusive, a desenvolver algumas técnicas pra corrigir isso.

A mais importante delas: não devolver a pergunta, em hipótese alguma. Se, realmente, não compreendesse, ficava repetindo o som mentalmente.

Se ainda assim não desse certo, tentava aliar o som ao tema da conversa.

Por exemplo, se a frase terminasse em “ela” e estivéssemos na cozinha, eram grandes as chances de a minha missão ser “pegar uma panela”.

Essas tentativas de adivinhar foram engraçadas.

Ela:

- Mudou de canal?

- Que f... – parei a frase pela metade.

Consegui!

É difícil, exige um autocontrole absurdo. Foi o primeiro passo. Um passo de cada vez.

Mas, a pergunta? Qual era? Passei a repetir mentalmente o som que tinha escutado. Terminava em “al”. Al, AL, AL...

Arrisquei:

- Se estou me sentindo mal?

Ela riu. Comecei a dizer em voz alta “AL, AL, AL...”

- Se eu vi o jornal?

Em silêncio, ela fez sinal pra eu continuar tentando. “AL, AL, AL...”

- Cheiro de animal?

Ela olhou o controle remoto de relance. Era a dica. Gritei:

- Canal, canal. Se eu mudei de canal!!! Eu mudei de canal! Mudei, sim!!!

Ela, séria:

- Pois é... e eu tava vendo a novela.

Eu, sem pensar:

- Oi?

E fechava o tempo novamente...

Mas, com a minha ideia tudo mudaria.

Era simples: consistia em esperar uns cinco segundos antes de tentar adivinhar ou perguntar “que foi?”.

Se nesse meio tempo as coisas não ficassem claras, a pessoa que começou o assunto repetiria o que disse, sem a necessidade de alguém parecer um tonto fazendo “Hã?!”

Propus, ela achou interessante e resolvemos tentar.

Uma semana depois, vimos que não tinha como dar certo. Ficávamos cinco, dez, vinte segundos e esquecíamos da pergunta, da ideia e até de quem tinha começado o assunto.

Ainda tentamos exercitar alguns dias, até que pedi para abaixar o volume da TV.

Ela não compreendeu e, conforme tínhamos combinado, ficou em silêncio. Só que esperamos quase um minuto e esqueci de começar o assunto novamente. Em vez disso, soltei um “Que foi?”

Ao que ela respondeu:

“Hã?!”

E a ideia naufragava. Respiramos fundo e deixamos assim, o dito pelo não dito. Ou melhor, o dito pelo não entendido.

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Que diferença!

Um sábado sozinho em casa, sem esposa, e não resisti. Nós, homens, somos uns fracos mesmo. Reconheço.

O lugar estava funcionando. Entrei sem cerimônia. A porta estava aberta. A foto de uma mulher nua na frente.

Recebi uma saudação nada efusiva. Algo como um “e”, dito sem por um rapaz que nem olhou na minha cara.

Eu já sabia onde estava o que queria. Fui direto.

Terceira estante. A seção dos pornôs nacionais.

Virava compulsivamente as caixinhas dos DVDs.

Cada capa de filme que olhava, quase de relance de tão rápido, me fazia lembrar a aventura que era, na minha época de adolescente, para ver uma mísera bunda em uma Playboy na banca. Que diferença!

Lembro da primeira revista de mulher pelada (como se dizia na época) que comprei na vida.

Levei quase um mês pra conseguir. Ia à banca todas as manhãs para estudar como faria para concretizar meu plano.

Analisava tudo: qual era o horário de menor movimento, se tinha algum conhecido dos meus pais que costumavam passar por ali, o que exatamente eu deveria dizer à dona da banca e, principalmente, qual o horário em que ela almoçava e seu filho assumia o posto.

Resolvi que, por questões de segurança, faria isso em outro bairro. Tratei de me disfarçar com um boné e mudar a voz. Enchi o peito, deixei o troco de pão dos últimos 15 dias e, finalmente, pude sair correndo com a Playboy da (pasmem!) Alexia Dechampis. Se você não lembra quem é, joga no Google.

Cada um tem a Playboy que merece.

A Alexia (como eu a chamava na intimidade) inaugurou uma coleção que chegou a ter mais de 20 edições e que foi vendida pelo equivalente a um corte de cabelo, cinco anos depois, na época das vacas magras.

Lembro que o máximo que eu conseguia em vídeo, era gravar, escondido, trechos do Cine Privé e da Sexta Sexy, que passavam na TV Bandeirantes. Gravava com a TV desligada e via na segunda-feira, antes de ir pra escola. Que diferença!

Agora, cá estou eu, na dúvida se levo somente dois filmes ou se aproveito a promoção “pague três e leve quatro e só devolva na terça”. E ainda posso fazer cópias no meu computador. Quantas quiser. Para ver quando quiser.

Eu com 13, 14 anos, estaria orgulhoso se me visse hoje, no auge dos 30 com o mundo pornô nas mãos.

Escolho os títulos e levo para o atendente. O mesmo rapaz que nem olhou na minha cara quando entrei.

Ele pega o nome dos filmes, vai atrás do balcão, encontra os DVDs e, antes de colocar na caixinha, lê o título, vê a foto da capinha e, finalmente, olha pra minha cara. Solta uma risadinha e um “Aêêêê!”, que chama atenção de todos da locadora. Fico vermelho.

Tem coisas que não mudam.

Abaixo a cabeça e sinto falta daquele boné que me acompanhou na compra da Playboy da Alexia. Por via das dúvidas, decido que, da próxima vez, por questões de segurança, vou escolher uma locadora em outro bairro.

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Sobre Santos e Peñarol

Pai,

não sei se você se lembra, mas a primeira vez que entrei em um estádio de futebol foi para assistir a um Santos e Peñarol!

Era pela Supercopa dos Campeões da Libertadores, a Sulamericana dos anos 80.

Não recordo o placar ou o nome de nenhum jogador do Santos naquele ano.

Aliás, não lembro sequer o ano.

Só sei que estava contigo.

Se os pais soubessem a importância disso...

Até hoje, coleciono algumas recordações do ambiente mágico daquela noite.

Fiquei impressionado, por exemplo, com o movimento dos zagueiros quando cabeceavam a bola cruzada na área.

Parecia que o pescoço dava uma volta inteira para rebater a bola.

E tinha a impressão de que eles sorriam quando faziam isso.

Era como se o jogo fosse um teatro feito pra mim. Uma peça que você dirigia cada vez que narrava o jogo e avisava o que estava para acontecer. “Chuta” e o cara chutava. “Toca” e o cara tocava.

Lembro também que tentamos entrar no banheiro.

Que tristeza era o banheiro da Vila Belmiro no final da década de 80, lembra? Dez centímetros de urina cobriam o chão. Sem contar a fila.

Mas, como fazem todos os heróis da nossa infância, você agiu rapidamente, pai.

Comigo sentado em seus ombros e balançando uma bandeirinha de papel, partiu para um bar em frente ao estádio.

Não que fosse mais limpo, mas pelo menos não tinha fila.

Aliviados, entramos novamente no estádio sem precisar pagar outro ingresso. Você explicou a situação ao PM e ele entendeu. Dá pra acreditar?

Tudo isso foi num jogo contra o Peñarol, pai. Esse mesmo Peñarol que vamos enfrentar depois de amanhã e, se ganharmos, seremos tricampeões da América. Percebe a coincidência?

Pelas minhas contas, à época, o tal do Neymar, que tanto falam, nem existia.

Éramos apenas os bicampeões mundiais. E só. Como se fosse pouco...

O problema é que as melhores imagens do nosso time eram em preto e branco. Não o preto e branco do uniforme, mas o das TVs dos anos 60. Precisávamos de replays coloridos.

A cada ano que ficávamos na fila, essa época gloriosa ficava pra trás.

Você lembra, pai, que chamavam a Vila de chiqueirinho?

Talvez, o senhor não se lembre disso tudo.

Uma pena.

Se lembrasse, se emocionaria junto comigo na partida da próxima quarta, contra o mesmo Peñarol, com os times vestindo os mesmos mantos sagrados que transformam simples jogadores em semideuses.

Ficaria emocionado ao recordar do meu sorriso gritando “gol” pela primeira vez e da bandeirinha que nos momentos de tédio eu apoiava em sua cabeça.

É verdade, pai, o pescoço dos zagueiros já não giram com tanta intensidade, com o mesmo vigor, assim como os PMs não compreendem mais com tanta facilidade um pai que corre com seu filho em busca de um banheiro.

As lágrimas emocionadas de quarta-feira, sejam elas de alegria ou de tristeza, certamente fariam o senhor lembrar daquele menino que carregou nos ombros e que, graças àquela noite, se tornou um santista apaixonado por futebol.

Daqui a alguns anos, quando eu levar meu filho à Vila pela primeira vez, também sentado no meu ombro, o guri talvez não sacuda nenhuma bandeirinha.

É provável que vá conectado em alguns desses novos aparelhos eletrônicos. Assim como nós, que entramos no ‘alçapão’ grudados em um radinho de pilha que tinha sido do seu pai.

Em alguns clicks, o guri poderá saber de todos os detalhes desse jogo contra o Peñarol que eu tanto falo, e que não sei exatamente quando foi, nem quanto foi.

E, talvez, daqui a algumas décadas, às vésperas da final de uma Libertadores que trará o tetra, ele vibre com os gols de um craque que ainda nem nasceu e escreva um e-mail pra mim falando do dia em que o levei ao estádio pela primeira vez.

quinta-feira, 17 de março de 2011

Parabéééééns!

Isto foi há quase um mês. Começou quando pulou uma janelinha do MSN. Um amigo digitando o nome de famosos que faziam aniversário no dia 23 de fevereiro. Não entendi nada.

E como acontece sempre que não entendo alguma coisa, digitei “hehe”. É a minha risada sem graça virtual.

Ele insistiu. “E tem esse, e aquele outro, e mais esse, e aquele...” Resolvi perguntar o que ele queria com aquilo.

Enquanto esperava uma resposta, vejo pular outra janelinha: “Felicidadeeeeees!!!”.

Antes que eu esboçasse uma reação, pula outra com um desenho de um bolo com velas em cima.

Quando já não estava entendendo absolutamente mais nada, o dono da primeira janela responde em letras garrafais: “PARABÉÉÉÉÉÉÉNS, NÃO ESQUECI, NÃO, SÓ TAVA TE ZUANDO. FELIZ ANIVERSÁRIO!”.

Levantei, assustado. Por alguns segundos, fiquei chateado com a minha mulher que não me levou café na cama e saiu sem dar meu presente.

Nem um bilhetinho embaixo do travesseiro.

E o que dizer da minha mãe que não tinha me ligado até aquela hora?! Quase 10 da manhã! Que tipo de mãe esquece do filho no dia do aniversário?!

Voltei ao computador e comecei a explicar que não nasci dia 23. E mais: não foi nem em fevereiro que resolvi dar às caras nesse mundão de meu deus. Desde sempre foi março. Dia 18.

“Mas, foi o Facebook que avisou”, ele retrucou.

Realmente, tomei posse de um perfil que o próprio site tinha feito, com meu nome e e-mail, e que reunia amigos meus. Parece que fazem isso automaticamente pra estimular as pessoas a participar. Mas, não me lembro de ter preenchido qualquer informação pessoal. Devem ter feito isso por conta própria também.

E as janelinhas de MSN não paravam de pular.

Cheguei até a ficar chateado por não fazer aniversário naquele dia.

Tanta gente me dando parabéns e eu, simplesmente, como que por pirraça, esperando pra comemorar quase um mês depois.

Percebi que a coisa estava séria quando atendi ao telefone e, do outro lado, um afinado e emocionante “Parabéns pra você”. Para mim, no caso.

Sempre que imaginava cena parecida, me vinha à cabeça a voz da Marilyn Monroe. Cafona e previsível, eu sei.

Mas, o fato é que demorou 30 anos pra acontecer, e, quando aconteceu, foi a voz de um amigo do colegial que escutei (colegial! Alguém lembra?! OSPB?!).

Voz grossa. E na data errada.

Deixei ele terminar pra não cometer nenhuma indelicadeza e, quando ia explicar o engano do Facebook, ele manda um: “aparece na janela do teu quarto”.

Lá estava ele. Do outro lado da rua. Sorriso largo, braços abertos.

Antes de sair de casa, leu que era meu aniversário, ia passar ali por perto, resolveu me dar um abraço. “Desce aí”.

Faltou coragem pra revelar a verdade. Tantos anos que a gente não se via. Eu seria muito insensível.

Só agradeci. Reconheci que faria 30 anos, concordei que estávamos envelhecendo, recebi um forte abraço, sinceros votos de paz, saúde e muitas felicidades e voltei pra casa.

Hoje, corrigi meu cadastro no Facebook. Sei que o amigo do colegial vai ligar e perguntar como posso fazer aniversário pela segunda vez no mesmo ano.

Ainda não sei o que responder. Talvez, não atenda
.

quarta-feira, 19 de janeiro de 2011

Na dúvida...

Antigamente, as fofoqueiras tinham um perfil bem definido. Viviam em janelas, como se fossem corujas, observando tudo atentamente.

Qualquer ceninha poderia ganhar grandes proporções nas suas histórias. Mas, por mais que acrescentassem trechos de diálogos ou fizessem uma síntese maldosa da situação, na grande maioria dos casos, falavam sobre o que realmente viam de seus quintais.

A fulana de papo com o leiteiro, o rapaz olhando uma moça por cima do muro, uma discussão corriqueira entre dois moradores. Não inventavam, só apresentavam suas próprias conclusões.

A fofoqueira da minha infância era dona Adeilda, uma senhora que vivia pendurada na janela azul de um sobradinho perto da minha casa, atenta a qualquer sinal de notícia. Paparazzi sem câmera.

Dona Adeilda era uma fofoqueira tradicional. Não passava pra frente coisas que não tinham fundamento e que ela mesma não tivesse visto, pelo menos, um indício.

Tudo bem que um “bom dia” podia virar uma cantada aos olhos dela, mas esse negócio de ‘me contaram’ e o ‘ouvi dizer’ não tinham vez.

Havia uma espécie de código de ética entre as fofoqueiras da turma da dona Adeilda. Fofoqueiras, não. Observadoras, elas se auto-proclamavam.

Mas, de uns tempos pra cá, essas donas cotinhas do tempo de nossas avós perderam espaço para os tresloucados do mouse, grupo que tem entre seus principais representantes os encaminhadores de e-mails.

Imagino que, assim como eu, você também deva receba e-mails apelativos com fotos de crianças desaparecidas, doentes em fase terminal, cujos familiares receberão 10 centavos por mensagem encaminhada.

Sem falar nas lendas urbanas mais desconexas que a da loira do banheiro ou a do rim roubado por uma mulher sedutora que circula pela cidade em um conversível vermelho.

As histórias de hoje, que entopem nossas caixas de entrada, não são tão coerentes quanto às da época de dona Adeilda, que eram espalhadas no boca a boca e não podiam apresentar furos.

Ninguém queria ser desmascarado na frente de todos. Hoje, como a coisa vai por e-mail, ninguém está nem aí pros absurdos que espalha.

Recentemente, perguntei para uma pessoa sobre a terrível história que ela tinha encaminhado. Uma mãe que deixava seu filho ir ao banheiro de um shopping e, depois de uns minutos, descobria que ele tinha sido violentado e estrangulado. Morto com um rolo de papel higiênico na boca.

Abismada, a fofoqueira virtual me respondeu:

“Nossa, era isso? Desculpa, nem li”

Como “não leu”???

Dona Adeilda não admitiria isso. Estava em jogo sua moral de maior observadora do bairro.

Tão terrível quanto não ler, é ler, encaminhar, e escrever no corpo do e-mail: “Não sei se é verdade, mas, na dúvida...”

Na dúvida, não passa, diria a fofoqueira da minha infância.

Que lógica é essa de que, na dúvida, eu difamo?, na dúvida, eu digo que tem criança precisando de rim?

Agora, tudo quanto é piada que circula na rede é do Luis Fernando Veríssimo. E-mails com conteúdo político (quase sempre preconceituoso e agressivo) creditam ao Arnaldo Jabor.

Poeminhas imbecis e vazios falando do valor do amor, cada verso copiado de um blog adolescente, ganham a assinatura de um Mário Quintana ou um Drummond. No final do e-mail, sempre o aviso: “Não sei se é dele mesmo, mas, na dúvida...”

Isso sem falar nas baixarias da reta final das eleições, que, na dúvida, muita gente passou pra frente e, talvez, merecessem um texto exclusivo.

Ah, dona Adeilda... Bons tempos aqueles em que sua turma fazia uma investigação quase jornalística para desvendar os olhares entre o leiteiro e a mulher do açougueiro. Não podia restar dúvida.

O que faria a senhora se ainda estivesse por aqui, atenta e imponente, do alto da janela azul de seu sobrado?

Posso até vê-la desiludida, balançando a cabeleira lilás e abandonando seu posto de observação para procurar algo útil para fazer. Preparar o jantar, varrer o quintal, ou até tirar um cochilo. Mas, encaminhar e-mails sem ler, isso, dona Adeilda, tenho certeza que a senhora não faria.