segunda-feira, 21 de dezembro de 2009

Acerto de contas

“Espírito de natal é o cacete. Quero meu dinheiro de volta!”

E a confusão estava armada. O sujeito era muito gordo e muito branco. Estava vestido todo de preto. Parecia um urso panda.

Tinha retornado ao shopping com o único objetivo de fazer justiça. Ficou revoltado ao perceber que comprou gato por lebre numa grande magazine, na noite anterior.

E só sossegou quando chegou ao shopping, escalou a escada rolante, tão impaciente que estava, e irrompeu na loja, aos gritos.

Ao ouvir o primeiro: “desculpe senhor, mas acho que não podemos fazer nada”, urrou e ficou ainda mais parecido com um urso. “Como, nããããããããããão??!?!!?!?!”

O shopping todo decorado para as festas de fim de ano. Guirlandas, bolinhas de natal, um enorme pinheiro e todos os seus penduricalhos e... ele mesmo: o Papai Noel! Movendo-se ao ritmo de uma insistente musiquinha natalina, o bom velhinho ficou espantado com a gritaria.

Ao contrário desses papais noéis que se encontram por aí - alguns com menos de 30 anos e sem um só pêlo no rosto - esse era bem parecido com a imagem que guardamos do velhinho: gordinho e de barba branca. Só a turma dos duendes que não era muito fiel ao imaginário popular, já que, pela falta de anões a um salário acessível, o grupo era composto metade por anões e metade por crianças.

Antes que o grandão emitisse outro grito, veio o bom velhinho separar. Foi aí que se deu a cena que escandalizou os nobres freqüentadores no lugar. O primeiro argumento do Papai Noel foi “cadê o espírito de natal, meu filho?” e a resposta foi um sonoro “Espírito de Natal é o cacete!”. Como se não bastasse responder assim a um ícone da cultura natalina, o grandão seguiu com seus gritos:

“Espírito de natal é o meu dinheiro de volta. Ou eles devolvem ou acabo com toda essa palhaçada de natal”, disse, destruindo uma guirlanda que estava perto de sua cabeça.

Diante da ameaça, as crianças passaram a olhar a cena como se o gordo fosse realmente um urso panda do mal disposto a acabar com o Papai Noel e com todo o espírito natalino.

Quando o bom velhinho tentou aproximar-se, numa última tentativa de acalmar o rapaz antes da chegada dos seguranças engravatados que salvariam o natal, o grandão reagiu:

“Nem vem me encher o saco, seu velho”

E depois de um tempo:

“INCLUSIVE” – disse esse “inclusive” mudando de tom e virando a cabeça lentamente para olhar o Papai Noel, como se estivesse lançando mão de um argumento infalível, perfeito dramalhão de novela mexicana. Encarou o velhinho e abriu seu coração, quase gritando:

“CA-DÊ MEU AU-TO-RA-MA?????”

Disse separando as sílabas, dando ênfase a cada uma delas, como se estivesse jogando na cara do Papai Noel cada brinquedo esquecido ou até mesmo os minutos de atraso na entrega.

Papai Noel e os duendes recuaram. Não fossem as renas feitas de papelão e pudessem voar, certamente eles entrariam no velho trenó e viajariam rumo ao Pólo Norte.

E o grandão voltou a ser criança. “Meu autorama?” Foi se aproximando do Papai Noel, como num combate final.

Os duendes ficaram em volta das pernas do bom velhinho, que suava e se precipitava em passos incertos para trás.

“Meu autorama, cadê???”

As crianças gritavam, o gordão ia puxando todas as guirlandas que surgiam no seu caminho até o Papai Noel, que num desses passos incertos, tropeçou numa das renas de papelão e despencou no chão do shopping.

Era a derrota do espírito de natal. Quando os seguranças chegaram, nem se preocuparam em saber o que acontecia, preferiram ajudar o velhinho.

Debaixo de vaias, mas se sentindo vingado, o grandão deixou o shopping num cenário desolador: com guirlandas espalhadas pelo chão, cerca de trinta crianças chorando e uma insistente musiquinha natalina a inundar o ambiente.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Câmbio, Silêncio

A coisa acontece mais ou menos assim: de um silêncio profundo, surge um incômodo e ensurdecedor

“PRIIIIIIIIIIIIIIIIIIII”

Uma pessoa leva a mão ao bolso, saca um maldito aparelhinho de rádio, aperta um botão na parte lateral, aponta para a boca e:

“FAAAAAAAAAAAAAAALA, FULANO, E AÍ?”

Em seguida, dá gargalhadas, grita, solta piadinhas infames... tudo sem a menor cerimônia, para todos ouvirem, como se estivesse em sua sala de estar.

Desde que esses malditos rádios se espalharam pela cidade – pelo estado, quiça pelo país inteiro -, oferecendo descontos e planos gratuitos de chamadas entre eles, frases como “Paulinho, seu merda, por que você não foi ontem?” e “Peguei a bêbada da Flavinha”, são ditas sem nenhuma cerimônia.

Ficamos íntimos de algumas pessoas que não gostaríamos nem de olhar.

Já descobri, por exemplo, que o Renato pegou a Paula, que o Jorge saiu travado da festa da Fernanda e que depois bateu o carro.

Acabo de descobrir, inclusive, que esse gordo que, com uma mão tenta se equilibrar dentro do ônibus e com a outra aperta o botão lateral do radio, brigou com a mulher e que desconfia que a ‘vaca tem outro’, como ele mesmo conta e, depois, explode numa sonora e imoral gargalhada.
Pessoas sem bom senso sempre existiram e, antes, berravam nos celulares e até nos orelhões. O problema é que com os radinhos em viva-voz ouvimos também o outro lado, a parte que faltava. Temos o diálogo completo. O que, na maioria das vezes, é desesperador.

Os cenários para essas conversas são os mais variados possíveis: ônibus, mercado, igreja, restaurante...

Conheço um camarada que foi ao velório do chefe e atendeu ao rádio. Quando sussurrou ao amigo onde estava, ouviu-o berrar em alto e bom som, a plenos pulmões: “e o safado morreu de que?”. Talvez, até o morto tenha olhado pra ele. Constrangimento total.

Sempre me questionei por que as pessoas que gostam das piores músicas têm os rádios mais potentes – ou, pelo menos, são os que querem testar toda a capacidade das caixas acústicas de seus carros. Agora, me pergunto por que os diálogos gritados no viva-voz são protagonizados por pessoas que só falam besteira. Talvez, a explicação seja a mesma.

Quem sabe uma tentativa de fazer com que os outros participem da sua vida. Saibam dela, dêem palpite. Mais ou menos como fazem com os artistas, personagens de novela...

Por um tempo, acreditei que não havia uma versão silenciosa desses rádios. Que aquele “Priii”, seguido pelas piadas infames em voz alta era a única forma de se comunicar nessas pragas.

Mas, fiquei espantado dia desses ao descobrir que existe um botão que deixa o bichinho silencioso. Ou seja, fazem isso de caso pensado. Fico imaginando o camarada gordo saindo de casa e combinando com alguém para o chamar no rádio daqui a 15 minutos. É o horário exato em que ele estará no ônibus - ou melhor, no busão – se segurando em uma barra de ferro com uma mão e com a outra apertando o botão e contando quem estava bêbado na festa da Carlinha.

Da próxima vez, prometo que, para suprir a carência, faço um comentário elogioso sobre as roupas do gordo fofoqueiro que foi traído pela vaca.

Mas, para isso, por favor, moço, coloque esse rádio no silencioso. Preciso pensar na minha vida.
Câmbio, desligo.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

X-sujinho no capricho

“Mas, ele faz o lanche sem luvas?”

Confesso que nunca tinha reparado que o melhor sanduíche da cidade era preparado por um chinês sem luvas. E, não fosse a intervenção de um enxerido, que eu levava para conhecer o lugar, acho que jamais teria reparado.

Saia justa. Não sabia se deveria falar “nossa, como eu nunca percebi isso”, levantar e ir embora, ou se devia ignorar a observação do intrometido amigo e devorar o meu Kanguru, como é chamado o sanduíche com dois hambúrgueres servido no sujinho.

Escolhi a segunda opção. Comi sob incômodos olhares incrédulos.

E, por incrível que pareça, passei mal.

Em mais de 15 anos, nunca havia me acontecido nada, embora a mão do chapeiro fosse a mesma. E sempre sem luvas.

Mas, bastou alguém levantar a suspeita de que o tempero que deixava o sanduíche delicioso estivesse nas unhas do china para acontecer isso.

Longe de mim discordar da vigilância sanitária, mas não há como negar que há um forte fator psicológico nisso tudo.

Se você acha que não, me explique por que, então, os doces da praça da Biquinha - a mesma Biquinha do Copam dos pombos - ficaram tão sem graça depois que deixaram a coisa mais limpinha?
Antes, os doces eram colocados em velhas tábuas de madeira, cobertas apenas por uma toalha de redinha supostamente branca. Vinha gente de tudo quanto era canto de São Paulo para comer aqueles doces. O negócio ficou famoso e quiseram deixar tudo bonitinho.

Hoje, os doces estão lá: lindos, em estufas, dentro de boxes limpos e bem organizados, com funcionários que usam luvas e toucas, e...

...como era de se esperar, perderam a graça. O gosto é outro. Inexplicável. Igual ao Kanguru, que passou a me fazer mal quando vi que o china não usava luvas. Tudo psicológico.

Por mais que eu goste dos sujinhos, também tenho algumas más recordações. Como no dia em que pedi um X-Salada e fui alertado que a salada tinha acabado.

“Vai sem salada mesmo”

Dez minutos depois, sanduíche pronto para ser levado à mesa, ergue-se uma mão detrás do balcão balançando uma folha de alface encardida retirada sabe-se lá de onde.

“Achei, achei o alface, moço. Pode colocar?”

Por essas e outras, não defendo aqui o “abaixo à limpeza na cozinha”. Nada disso. Não quero ter nenhuma intoxicação.

Mas, é que tem coisas que, de tão limpinhas, perdem a graça. Vai dizer que você nunca teve vontade de comer um pastel de feira, aquele que pinga óleo pelas beiradas?!

Acho, inclusive, que o gosto está naquele óleo. Tentei comer uma versão light, feita com óleo de girassol. Pastel sequinho e sem gosto.

E o yakissoba que milhares de pessoas comem no meio da rua, no centro de São Paulo. Vá preparar ele em uma cozinha totalmente desinfetada pra você ver.

E o que dizer do churrasquinho Grego? Prepare em casa e verá que nunca terá o mesmo gosto.
Assim como o misto quente do boteco, aquele que só fica bom no final do dia, quando a chapa conta com vestígios de ovo, bife, calabresa, bacon... Você pede misto quente e vem praticamente um X-Tudo.

O fato é que, agora, para comer meu Kanguru sem passar mal o melhor mesmo será fazê-lo em casa. A menos que eu queira arriscar e encarar novamente as mãos empesteadas de bactérias do chinês.
Posso também achar outro bar. De preferência, um que tenha a cozinha bem fechada e eu não veja as barbaridades que se faz lá dentro. Tomando sempre o devido cuidado de evitar saladas e amigos intrometidos que bisbilhotam o trabalho de chapeiros inocentes.

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

O caso dos pombos

Gruuuuuu... Gruuuuuu...

Este foi o primeiro sinal de que não estávamos sozinhos. E, talvez, significasse um “sejam bem vindos” em pombês ou qualquer que fosse a língua falada pelos pombos.

Não sei quantos são. Só sei que habitam a caixa vazia de ar-condicionado do único quarto do apartamento e que, aos poucos, começam a se adaptar aos hábitos noturnos dos novos inquilinos. Estão sofrendo um pouco, mas irão se acostumar.

Nos primeiros dias, reclamaram bastante do liquidificador batendo às duas da madrugada e da luz ligada no quarto até quase o dia seguinte.

Berraram um ‘gruuu, gruuu’ agressivo, irritado. Pelo tom, pediam que parássemos com aquela barulheira e fossemos dormir, aquilo não era hora...

Lá pelas cinco da manhã, ao apagar a luz, ainda ouvimos um “gruu”, mais curto, rápido e vitorioso, como se o chefe da família dos pombos dissesse “e que isso não se repita!”.

Tenho nojo de pombo.

Lembro, sem nenhuma saudade, das tardes de domingo em que a família inteira ia para a Biquinha, aqui mesmo em São Vicente, para dar milho a essas criaturas.

Na praça, tinha um pombal enorme, parecia um prédio gigante com centenas de janelinhas. Era uma espécie de Copam dos pombos.

Os pais compravam saquinhos de milho dos ambulantes que rondavam a praça e as crianças se divertiam com aquilo. Eu achava nojento.

Mais do que aquelas dezenas de pombos cercando pobres crianças indefesas para reclamar da demora na entrega do milho e tentar roubar o saco inteiro sem mais delongas, eu sentia nojo do “gruuu, gruuu” que eles faziam.

Consegui a indicação de um produto que, aplicado na humilde habitação dos bichos, prende suas patas.

Depois de algum tempo, eles conseguem se soltar, mas ficam tão assustados que não voltam mais.

Fiquei impressionado com a inteligência do bichinho. Basta uma única punição para entenderem que estão errados e desaparecerem.

Um conhecido meu tomou três multas por excesso de velocidade no mesmo lugar. Se fosse um pombo, já teria aprendido.

Ao me ver no telefone, agitado com a pesquisa de preço do tal repelente, minha esposa fez a seguinte pergunta: “Mas pra onde eles vão se saírem dali? Não tem mais árvores por perto. Certamente, vão para outra caixa de ar condicionado ou parapeito de janela...”

É triste a ideia do despejo. Me veio à cabeça um trecho de Saudosa Maloca, os pobres pombos sendo despejados ‘indo pro meio da rua apreciar a demolição’.

Ela ainda deu o tiro de misericórdia no meu instinto exterminador: “eles têm um bebê agora... Ontem, quando abri a janela, ouvi um piadinho”. Pronto... Agora, a coisa ficou complicada.

Cedi... Pensei que poderíamos, então, fazer um teste. Pelo menos, até a criança deles ficar maiorzinha. Além do mais, nunca os vimos, eles ficam do lado de fora, não têm como transmitir doença alguma desse jeito.

Agora, estão lá, naquela espécie de puxadinho de menos de 1m².

Aos poucos, também vou me acostumando com a presença deles.

Já dou até bom dia quando abro a janela. E escuto um sonoro e feliz “gru, gru” como resposta.

Mas, não adianta, se dependerem de milho comprado na Biquinha, podem ter certeza de que vão morrer de fome. Com criança e tudo. E que se contentem em morar de favor na minha caixa de ar condicionado.

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

Quero ser machão

Broca? De 5 ou de 8? Concreto ou madeira?

Ando procurando um curso para formação de machões para solucionar problemas como esse.

Não sei se isso é um mal de todos os homens dessa geração de vinte e poucos anos ou se é um defeito só meu mesmo.

Explico: sou uma total negação para as atividades domésticas.

Sabe aquelas missões que são de responsabilidade do homem da casa, do chefe da família?!

Coisas que nossos pais tiravam o domingo para fazer?! Limpar ralos, desentupir pias, instalar armários, lustres, trocar chuveiros. Afazeres que os velhos analisavam a semana toda como deveriam ser feitos.

Depois, corriam para o armário, sacavam suas maletas 007 de onde tiravam lindas furadeiras devidamente acompanhadas de inúmeras brocas, uma para tipo de material a ser perfurado, dos mais diferentes tamanhos.

Não sou muito amigo de furadeiras.

É certo que nunca me senti tentado a estabelecer um diálogo com o barulhento equipamento, tão amigo dos chefes de família.

E, para piorar, tenho um medo incompreensível de eletricidade, o que faz com que eu sempre saia para comprar cigarros, embora não fume, na hora de trocar a resistência do chuveiro e sue frio até mesmo para substituir uma lâmpada.

Já me peguei pensando onde foi parar essa vocação para pequenos reparos tão presente nas antigas gerações.

Por que não passou de pai para filho?

Teria ela sucumbido diante das delícias da TV a cabo?

Ou fora engolida pela correria do dia a dia?

Já ouvi gente dizer que os culpados são os minúsculos apartamentos alugados, que substituíram as enormes e aconchegantes casas feitas para toda a família e para toda vida. Em um lugar que é dos outros e onde vai se morar por pouco tempo, não se tem vontade de fazer nada.

No entanto, conheço quem, ainda hoje, ande pela casa em vistoria constante, atento a cada parafuso solto, mancha na parede ou dobradiças sedentas por óleo Singer. Queria ser assim...

Por isso, acredito que um ‘curso intensivo para formação de machões domésticos’ poderia resolver meu problema e impedir que minha esposa dê sempre uma risadinha quando alguém sugere soluções simples como “ah, é só fazer um furinho aqui” ou “É só trocar a resistência”

Um bom slogan para o intensivão seria “Aprenda a desntupir pias e ralos, instalar máquinas de lavar, armários e demais utensílios domésticos em apenas uma semana! “.

Se alguém ficar sabendo de um curso desses, me avise.

Em duas aulas, tenho certeza que saberia qual broca usar para furar essa parede da cozinha sem precisar ligar para o velho, no meio de uma tarde de domingo, e vê-lo entrar por aquela porta com sua maleta 007.

Bastava ele me dizer qual o tamanho da broca: de 5 ou 8? É a que fura concreto ou madeira?

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Promessa

Em frente ao espelho, achou que estava inchada. Cismou que
os seios estavam maiores, ela toda mais cheinha. 16 anos. Diante
do perigo eminente, prometeu: “se tudo der certo, 18 meses sem
sexo” Dezoito, o dobro do tempo da suposta gestação indesejada.

Quando desceu, agradeceu e só então percebeu o tamanho da
promessa. Apalpava o corpo, crente de que não conseguiria
cumprir “meu deus, um ano e meio sem sexo!”

Em pouco tempo, arrumou outro namorado.

“Deixa?”

“Não!”

“Por quê?”

Não tinha coragem de contar que era promessa. Medo de ele achar idiotisse.

“Ainda não”

E tentava distrair o rapaz.

“Deixa?”

“Não!”

“Por quê?”

“Só quero pegar, põe ele aqui na minha mão.”

E assim enganou o rapaz por 18 meses. Um ano e meio!
Programou uma volta em grande estilo. Lingerie nova, jantar à
luz de velas. Beijinho pra cá, beijinho pra lá...

“Deixa?”

“Claro”

E engravidou.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

O Fogão Vermelho

Resolvemos comprar um fogão vermelho. Essa foi a primeira decisão importante. A primeira coisa comprada para o apartamento, antes mesmo de alugarmos um.

Vermelho, da Brastemp, antigo e em ótimo estado. Tem aquelas asinhas que todos os fogões antigos têm. Anos 80, acredito. Compramos numa loja de móveis usados da Conselheiro Nébias.

E o que deveria ser um momento de alegria, o de contar a novidade para a família, foi um verdadeiro parto.

Aliás, se disséssemos que um parto iria ocorrer em nove meses, e que o resultado não seria um lindo bebezinho, mas um dinossauro, um ornitorrinco ou qualquer outro absurdo desses, acredito que pessoas como a minha mãe não teriam ficado tão alteradas.

“Como assim? Que absurdo... Um fogão sem temporizador e trava automática que impede a saída do gás? E... e... e... e...

... vermelho??????

Como assim??????"

A lógica familiar: casamento = crediário. Casa nova, coisas novas. Ainda que bregas e compradas nas Casas Bahia, em 100 prestações sem juros (?).

Todos à mesa, ensaiei uma forma de contar. Perguntei se minha mãe gostava de vermelho, depois perguntei se ela gostava de fogão para, só ao fim do almoço, perguntar o que ela achava de um fogão vermelho.

Cara feia, talheres batendo na louça, mão na testa, resmungos de “não acredito!!! vocês não fizeram isso, diz pra mim que não fizeram”.

“Um fogão sem temporizador e trava automática que impede a saída do gás?”

Quando provamos a inutilidade desses recursos para a nossa realidade, veio a dúvida incômoda, como em uma última tentativa de nos mostrar a verdade da vida: “Mas, porque vermelho???”

Conhecidos preferiram manifestar a displicência de quem parece que não ouviu o que você falou: “ah, se você acha legal”.

Outros riram como se tivéssemos contado uma extravagância qualquer. Como se disséssemos que iríamos morar no Pólo Norte. Em seguida, emendaram um: ‘Agora, fala sério, como é o fogão?’

Felizmente, não chegaram ao ponto de perguntar o porquê de comprar um fogão vermelho sem temporizador e trava automática que impede a saída do gás.

Ainda bem. Pessoas que levantam questões objetivas gostam de respostas objetivas. Nunca fui bom nisso.

Não entenderiam se disséssemos um breve e lacônico: “não precisamos de temporizador” ou “o fogão vermelho é lindo”. Não aceitariam um sincero “porque nos apaixonamos por ele” como resposta.

Ao fim do almoço, antes mesmo de recolhermos os pratos, parte do clima familiar já estava restabelecido com a promessa de um delicioso bolo de chocolate feito no forno do nosso primeiro fogão vermelho, que, por sinal, funciona perfeitamente, ao contrário do que muitos queriam acreditar.

Mais tarde, da cozinha, lavando a louça, ainda escutei a voz da minha mãe sussurrando a minha noiva:
“É séria essa história do fogão?”

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

O Dia do Desafio

Depois de assistir a três filmes do Woody Allen e ler a orelha de um livro do Freud, resolvi desafiar minha mãe.

Comecei pelos botões da camisa. Sempre ouvi dizer que deveriam ser abotoados de baixo para cima. Um por um. Se não fosse assim, não ficava direito.

Então, o desafio estava lançado.

Olhei bem para os lados para me certificar de que não seria interrompido.

Um a um, de cima para baixo e não mais de baixo para cima, conforme as instruções maternas.

Primeiro, o botão que fica perto do pescoço. Em seguida, o que fica logo abaixo.

E a cada botão fechado fora de ordem, desafiava as mais de duas décadas de dominação materna e imposição de um rígido controle na arte de abotoar uma camisa. Eu era um verdadeiro Che Guevara do vestuário fazendo a ‘Revolução dos Botões’.

Olhei para o espelho: estava tudo em ordem, no lugar. A camisa não estava torta, eu não estava torto!

E pensar em todo o tempo que segui à risca o ritual sem nunca questioná-lo. Mania estranha essa nossa de continuar fazendo as coisas como sempre foram feitas...

É o caso da famosa história do frango.

O cidadão nunca entendeu por que sua mãe, ao preparar um frango para a refeição, cortava suas asas antes de colocar no forno. Nunca procurou saber, apenas imitava.

Descobriu recentemente: o forno dela era pequeno, não cabia o frango inteiro. “Mas o meu forno é grande. Pra que, então, continuar cortando as asas do pobre animal?” questionou-se, quase em crise existencial.

Mas, voltando à minha saga revolucionária, decidi desmontar outras verdades absolutas de minha infância.

Foi quando chegou o momento de fazer careta e olhar para o vento. Fiz... Nada aconteceu.
Depois, jantei e tomei banho de barriga cheia. Não morri, nem entortei.

Fui ao supermercado sem pentear os cabelos e trouxe as compras sem sacolas.

Sai sem agasalho, esqueci (?) o guarda-chuva, fui ao shopping de boné, misturei cachaça com cerveja.

Exausto, dei-me por satisfeito. Agora, finalmente, havia acertado as contas com minha infância. Uma responsabilidade a menos.

Sei o que minha meia dúzia de leitores deve estar pensando...

E concordo.

Darei um tempo com os filmes do Woody Allen e queimarei as orelhas dos Fróides.

Fiquem tranquilos!

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Segurem o Vieira

De manhã cedo, à porta de casa, veio a mulher com um pacotinho:

- Toma isso aqui que é bom. É bicarbonato. Passa na língua que é tiro e queda. Controla a acidez.
Uma afta na língua estava lhe tirando o sono e também a paciência. Era uma segunda-feira e, como toda segunda-feira, estava irritado. Trabalhava há poucas semanas (duas para ser mais exato) num escritório no centro da cidade, mas além do sono atrasado devido à eventual farra do final de semana, a já citada afta e um conjunto de alergias eram os responsáveis pela súbita sensação de infelicidade. Tudo quanto era tipo de alergia, aquele homem trazia com ele. Bronquite, rinite e mais uma porção de nomes que tinham como principal característica, senão o fato de derrubá-lo, o irritante final “ite”. Pensou que só os nomes das alergias eram capazes de irritar qualquer um.

Tinha ainda uma mania que agravava seu quadro alérgico: gostava de sentir o cheiro de tudo que lhe passava nas mãos. “Vieira, passa esse documento por fax”, lá ia ele cheirar o documento. “Vieira, vamos a uma livraria sebo”, lá ia o nariz apontado para os livros empoeirados. “Vieira, dá uma olhadinha no jornal”, lá estava ele cheirando a página policial.

“Vieira, por que tá cheirando isso?”, lá vinha a vergonha, seguida de espirros. Parecia um maníaco.

Meio descrente da eficácia do produto, deu um beijinho de leve na mulher e colocou o bicarbonato no bolso da camisa, onde ficou esquecido até que Vieira metesse a testa no teclado do computador, transtornado pela ardência na língua. Percebeu que não tinha outro jeito. Certificou-se de que o pacotinho ainda estava lá, levantou-se e pôs-se a andar lentamente, a caminho do banheiro. Passou pela mesa de dois companheiros que o encararam e perceberam que algo estava errado. Vieira suava, olhos fixos e, poderíamos dizer, que nem tinha reconhecido os companheiros, não fosse um leve menear com a cabeça, dirigido ao centro da sala.
Entrou no banheiro. “Essa porta que não fecha”, resmungou sem usar a língua. Sem ter o controle das mãos, que tremiam insistentemente, tirou o pacotinho do bolso da camisa e abriu-o em cima da pia. A velha mania: cheirar o pacote, sob a desculpa de que precisava saber o que colocaria na língua.

Um grito:

- Virgê Maria. O seu Vieira é um drogado!

Olhou para a porta entreaberta. Pela fresta, enxergou a faxineira, com os olhos esbugalhados e as duas mãos na boca, escandalizada. Virou-se para o espelho e viu o tal Seu Vieira, tampando uma das narinas com o dedo e de frente para uma carreirinha de pó branco. Quis dizer: “não é nada disso”, mas soltou uns grunhidos, que era o que era possível àquela hora. Foi abrir a porta e deu com a faxineira no final do corredor, gritando como uma louca:

- Segura o drogado. O seu Vieira tá drogado!

Atrás da faxineira, correndo, soltando grunhidos e mordendo a língua de raiva, vinha o Vieira. Quando chegou à sala principal, viu um dos companheiros em cima da cadeira, o outro preparado para a briga e a faxineira no canto da porta, vassoura em punho.

- Tá louco, Vieira. Deixa a Dirce em paz! - disse o que estava pronto para a briga.

- É isso aí, deixa ela em paz - imitou o outro.

- Maeuumsoogado - foi o que resmungou o Vieira, querendo dizer: “Mas eu não sou drogado”.

- Ele tá completamente drogado, gente.

Vieira sacudiu a cabeça de um lado ao outro, querendo dizer que não estava drogado. Desesperado, mostrou o pacotinho para os três, na esperança de que algum deles entendesse que aquilo era bicarbonato.

- É cocaína!!! – gritaria.

- Meu Deus, o que é isso?

- Ébicaoato - quis dizer que era bicarbonato, mas entenderam: “Eu te mato”

- Matar por quê, o que eu te fiz?

- Segurem o Vieira!

- Peguem o drogado! - gritou a faxineira, erguendo a vassoura e partindo pra cima do alérgico Vieira.

A cena se assemelhava àquelas brigas de desenho animado: sobe a poeira e ora vemos um braço, ora uma perna, ora uma vassoura. Foi vassourada, murro, pontapé. Acabaram com o Vieira. Ficou ele no chão do escritório, com o braço da faxineira dando a volta em seu pescoço, apertando-o na popular ‘gravata’.

Mesmo depois que descobriram que o pó branco era bicarbonato e que Vieira era um alérgico e não um drogado, largaram em cima da mesa dele uma cartinha de demissão por justa causa.

- É melhor assim, vai que ele resolve se vingar. Nunca se sabe o que se passa na cabeça de um alérgico.

* Texto publicado no livro Blônicas 2 - A vez dos leitores

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

O cachorro-quente

A princípio, ela estranhou o pedido e logo achou que não passava de mais uma das minhas brincadeirinhas ao telefone. Riu.

Quando fiz ela prometer que me largaria se aquilo acontecesse com a gente, ela entendeu a gravidade do problema. Para arrematar o assunto, narrei a história:

“Ontem, cheguei na casa da minha irmã e vi meu cunhado resmungando por que não queria sair de casa. Queria ficar vendo TV e não podia perder a final de um programa muito especial.
Olhei para o aparelho e vi qual era o tal programa: um daqueles concursos americanos para ver quem come mais cachorro-quente... cachorro-quente, não... Hot dog!”.

Terminei com um dramático: “se um dia eu me acomodar na vida, você promete que me lembra dessa cena do cachorro quente?!”

Fico apavorado com essas terríveis visões de futuro. É como se Deus, ou alguma entidade que o valha, me jogasse na cara: se você não se cuidar, faço isso contigo. Como se prometesse me deixar gordo, plantado de frente para TV, com uma latinha de cerveja equilibrada sobre a barriga e vestígios de molho de macarrão na barba por fazer.

Nada contra quem ache lúdica e promissora a visão futura do gordo sentado no sofá.
Tenho amigos que não se incomodariam com isso e sorriem invejosamente quando vêem a imagem do Homer Simpson. Alguns até se imaginam como os grandes campeões do concurso ‘para ver quem come mais cachorro quente’ e, inclusive, já treinam para isso.

Também corro o risco de cair nessa.

Todos correm.

Talvez, ela esqueça de me chantagear com a cena do cachorro quente daqui a 5, 10, 20, 30 anos, quando o monstro da comodidade me atacar.

Talvez, o monstro ataque ela primeiro.

O fato é que me apavoro com isso. Me apavoro com a ideia da casa própria que nos prende eternamente no mesmo lugar, do carrão para a família, da comemoração dos 10 anos de trabalho com os amigos da repartição, do happy hour toda sexta e do sexo às quartas e sábados após à novela.

Talvez, eu tenha um bloqueio contra as coisas que ameaçam ser definitivas e insuportavelmente rotineiras.

Talvez, o alto número de “talvez” por frase denuncie a necessidade de buscar ajuda psicológica.

Farei isso depois, certamente. Depois do jogo de quarta à noite. Depois da macarronada de domingo. Depois do dia 10. Depois...

Enquanto isso, empurro com a, já protuberante, barriga.

Tentando me lembrar, em meio ao turbilhão de informações, compromissos e telefonemas, de não cair no lugar comum, me afundar na rotina, ou ir pelo caminho mais fácil.
Esperando escapar do dia em que ela vá interromper os meus resmungos e dizer: “lembra da cena do cachorro-quente...?”

domingo, 9 de agosto de 2009

Desculpem o atraso

Tenho fama de atrasado. E não é de hoje. Mas, pouca gente sabe o começo dessa história. Vamos aos fatos:

Nasci atrasado. Alguns minutos, tudo bem, mas bastante roxo. Acredito que esse pequeno incidente não tenha deixado seqüelas maiores do que essa minha forte tendência à procrastinação. Palavra bonita que quer dizer: ato ou efeito de procrastinar, transferir para outro dia, deixar para depois, adiar, delongar, postergar. Não fiquei abobado, por exemplo, mas acho que tudo pode ser feito amanhã.

Claro que não foi somente um pequeno atraso de alguns minutos na hora do parto e uma cara roxa que me deram essa marcante característica. Meus pais contribuíram com essa busca pelo atraso constante.

Fomos os últimos do bairro a comprar um vídeo cassete, por exemplo. Além disso, me divertia com Atari enquanto todos os amigos se digladiavam por um controle e pelos últimos lançamentos de Master System ou Mega Drive.

Comprei uma bicicleta quando já tinha idade para ter carro. Aí, veio a era digital. E para quem já era atrasado no tempo em que a vida passava mais lenta, imagina o meu drama na eterna luta contra a procrastinação na era do nanossegundo. E-mail, Orkut, Youtube, blog e um tal de Twitter que descobri dia desses como funciona. Coisa diabólica!

Há tempos que ensaio esse blog. Primeiro, achei que deveria ter um tema. Depois, um sentido. Mais tarde, uma coisa à dizer. E quando vi que a coisa estava ficando muito papo-cabeça, filosofia barata, resolvi cadastrar um nome qualquer e mandar ver.

Amenidades Crônicas. Sempre achei lindo quando chegava em algum lugar e via duas pessoas conversando descompromissadamente. Perguntava qual era o papo e sempre tinha alguém para responder: “amenidades”. Achava aquilo lindo. Falavam do tempo, de futebol, da vida dos outros... tudo era amenidade.

Sempre pensei que um dia eu seria um cara tão sábio a ponto de conversar amenidades com alguém. Mas, quando percebi que a sabedoria também era uma coisa que ia se atrasar para chegar em mim, resolvi inventar minhas amenidades assim mesmo, meio que de qualquer jeito.

Então, está aí: Amenidades Crônicas.

Boa leitura!