segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Segurem o Vieira

De manhã cedo, à porta de casa, veio a mulher com um pacotinho:

- Toma isso aqui que é bom. É bicarbonato. Passa na língua que é tiro e queda. Controla a acidez.
Uma afta na língua estava lhe tirando o sono e também a paciência. Era uma segunda-feira e, como toda segunda-feira, estava irritado. Trabalhava há poucas semanas (duas para ser mais exato) num escritório no centro da cidade, mas além do sono atrasado devido à eventual farra do final de semana, a já citada afta e um conjunto de alergias eram os responsáveis pela súbita sensação de infelicidade. Tudo quanto era tipo de alergia, aquele homem trazia com ele. Bronquite, rinite e mais uma porção de nomes que tinham como principal característica, senão o fato de derrubá-lo, o irritante final “ite”. Pensou que só os nomes das alergias eram capazes de irritar qualquer um.

Tinha ainda uma mania que agravava seu quadro alérgico: gostava de sentir o cheiro de tudo que lhe passava nas mãos. “Vieira, passa esse documento por fax”, lá ia ele cheirar o documento. “Vieira, vamos a uma livraria sebo”, lá ia o nariz apontado para os livros empoeirados. “Vieira, dá uma olhadinha no jornal”, lá estava ele cheirando a página policial.

“Vieira, por que tá cheirando isso?”, lá vinha a vergonha, seguida de espirros. Parecia um maníaco.

Meio descrente da eficácia do produto, deu um beijinho de leve na mulher e colocou o bicarbonato no bolso da camisa, onde ficou esquecido até que Vieira metesse a testa no teclado do computador, transtornado pela ardência na língua. Percebeu que não tinha outro jeito. Certificou-se de que o pacotinho ainda estava lá, levantou-se e pôs-se a andar lentamente, a caminho do banheiro. Passou pela mesa de dois companheiros que o encararam e perceberam que algo estava errado. Vieira suava, olhos fixos e, poderíamos dizer, que nem tinha reconhecido os companheiros, não fosse um leve menear com a cabeça, dirigido ao centro da sala.
Entrou no banheiro. “Essa porta que não fecha”, resmungou sem usar a língua. Sem ter o controle das mãos, que tremiam insistentemente, tirou o pacotinho do bolso da camisa e abriu-o em cima da pia. A velha mania: cheirar o pacote, sob a desculpa de que precisava saber o que colocaria na língua.

Um grito:

- Virgê Maria. O seu Vieira é um drogado!

Olhou para a porta entreaberta. Pela fresta, enxergou a faxineira, com os olhos esbugalhados e as duas mãos na boca, escandalizada. Virou-se para o espelho e viu o tal Seu Vieira, tampando uma das narinas com o dedo e de frente para uma carreirinha de pó branco. Quis dizer: “não é nada disso”, mas soltou uns grunhidos, que era o que era possível àquela hora. Foi abrir a porta e deu com a faxineira no final do corredor, gritando como uma louca:

- Segura o drogado. O seu Vieira tá drogado!

Atrás da faxineira, correndo, soltando grunhidos e mordendo a língua de raiva, vinha o Vieira. Quando chegou à sala principal, viu um dos companheiros em cima da cadeira, o outro preparado para a briga e a faxineira no canto da porta, vassoura em punho.

- Tá louco, Vieira. Deixa a Dirce em paz! - disse o que estava pronto para a briga.

- É isso aí, deixa ela em paz - imitou o outro.

- Maeuumsoogado - foi o que resmungou o Vieira, querendo dizer: “Mas eu não sou drogado”.

- Ele tá completamente drogado, gente.

Vieira sacudiu a cabeça de um lado ao outro, querendo dizer que não estava drogado. Desesperado, mostrou o pacotinho para os três, na esperança de que algum deles entendesse que aquilo era bicarbonato.

- É cocaína!!! – gritaria.

- Meu Deus, o que é isso?

- Ébicaoato - quis dizer que era bicarbonato, mas entenderam: “Eu te mato”

- Matar por quê, o que eu te fiz?

- Segurem o Vieira!

- Peguem o drogado! - gritou a faxineira, erguendo a vassoura e partindo pra cima do alérgico Vieira.

A cena se assemelhava àquelas brigas de desenho animado: sobe a poeira e ora vemos um braço, ora uma perna, ora uma vassoura. Foi vassourada, murro, pontapé. Acabaram com o Vieira. Ficou ele no chão do escritório, com o braço da faxineira dando a volta em seu pescoço, apertando-o na popular ‘gravata’.

Mesmo depois que descobriram que o pó branco era bicarbonato e que Vieira era um alérgico e não um drogado, largaram em cima da mesa dele uma cartinha de demissão por justa causa.

- É melhor assim, vai que ele resolve se vingar. Nunca se sabe o que se passa na cabeça de um alérgico.

* Texto publicado no livro Blônicas 2 - A vez dos leitores

4 comentários:

Anônimo disse...

Este blog deveria chamar-se "Amenidades AutoBiográficas".

O resto é silêncio!

orodeschi disse...

Ah, bicarbonato funciona mesmo.

Átila Serdera disse...

Bicarbonato, sei... Legal o livro, Blônicas, como conseguiu a publicação? Tenho 2 crônicas engatilhadas, quem sabe não publicam? Outra coisa, coloquei teu nome no meu blog sobre o Opalão preto, não sei se era você quem estava nele no dia. Acho que era. Enfim, abraço.

Débora disse...

Não vou nem ler esse post do blog pq, como eu sou muito chique, já fiz minha leitura direto no "Blônicas 2 - a vez dos leitores". E, por sinal, adorei!
Beijão