quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Sobre cachorros e renas


Festa de fim de ano da escola.

As crianças entoavam uma bela canção natalina quando a gritaria começou:

“Sentai, pô”

“É... Você acha que só você tem filho?”

“É isso aí. Senta, infeliz. Você é folgado pra cacete!”

Impassíveis, as crianças continuavam cantando o amor do natal e as bondades do bom velhinho que, numa linda noite estrelada...

“Vai pro inferno, filho da puta!” – devolveu o primeiro.

“Ah, cala a tua boca aí, ô retardado“ – responderam os outros.

“Um filho feio desse nem merece que você gaste foto com ele. Eu que não deixava o meu subir no palco vestido de viadinho” – apelaram.

Eu assistia a tudo à distância, de um canto estrategicamente escolhido, mais alto que o palco, de onde tentava um lugar ao sol embaixo do sovaco do cinegrafista e por cima do ombro de uma mulher desesperada que sacudia uma criança pelo braço e dizia:

 “Ai, meu Deus, cadê o Arturzinho? O flash tá ligado? Acha o teu irmão...”

“Ele é a rena, mãe?”

“Não, é o ajudante do Papai Noel”

“Mas, eu to vendo ele de rena...”

“Mas, eu paguei a fantasia de ajudante. Era a mais cara de todas! Vai ter briga!”

Ouvia isso e me espremia em um espaço de não mais de dez centímetros para fotografar meus sobrinhos, que eu também não sabia se surgiriam de renas ou de ajudantes do seu Noel.

O que nos chamou a atenção naquele microcamarote, no entanto, foi um verdadeiro show de horrores, que o cinegrafista teve o bom senso de não registrar, afinal de contas, mostrava o ridículo das pessoas que lhe pagariam por aquelas duas horas de gravação trêmula que, fatalmente, sucumbiria numa prateleira qualquer para toda a eternidade.

Lá embaixo:

“É essa a educação que você está dando pro teu filho?” – Atacou o primeiro, que levantou para fotografar o filho vestido de rena.

“Educação é o cacete; Vai te fu...”

“Com um pai desse aí, não me admira que o filho dele seja aquele negócio lá no palco. Olha o tamanho da criança. Deve ser criada à base de cachorro quente. Ele devia ser o Papai Noel, não o ajudante”.

Nessa hora, vi um gorro vermelho e um tênis cruzarem o salão, ataque prontamente respondido com uma varinha dessas de fada madrinha, que não sei o que fazia numa festa de natal, mas que atingiu em cheio a cabeça de uma mulher que nada tinha a ver a história.

E a criançada lá, a plenos pulmões: “Eu pensei que todo mundo fosse filho de papaaaaaaai Nooooooooeeeeel...”

Para muitas delas seria melhor mesmo ser filho do bom velhinho, caso ele existisse. Boa parte, aliás, poderia ser substituída por cachorros.

Se não o são, é porque os sabidos representantes dessa classe média iletrada não percebem nos cães os mesmos reconhecimentos perante a sociedade.

Ser pai dá um ar de responsabilidade que ser dono de um cachorro não dá. Somente por isso, eles insistem em fantasiar seus bebês de estimação e pagar uma escola para ensiná-los a deitar, rolar e dar a patinha durante a festinha de fim de ano.

Não importa se a criança está à vontade ou se chora debaixo de uma fantasia de camurça num calor de 40 graus.

O que importa é a foto!

Ao som do último acorde – como se tivesse sido exaustivamente ensaiado durante as reuniões de pais e mestres – os encrenqueiros desarmaram o circo. Endireitaram as costas, guardaram os gorros e as varinhas de condão, e se dedicaram a palmas efusivas e ritmadas.

Segundos mais tarde, tão logo pisaram fora do palco, as crianças foram guindadas pelas mães até a saída.

Os pais correram em outra direção, para pegar o carro. Não aguentavam ficar mais um segundo que fosse naquele lugar com um bando de gente mal educada.

E eu lá no meu canto, entre o sovaco do cinegrafista e o ombro da desesperada, que, por sinal, não encontrou seu Arturzinho.

Em compensação, fez uma linda sequência de fotos de um ajudante de Papai Noel bem gordinho, provavelmente criado à base de cachorro quente.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Ti coisinha mais fofucha


Puxando um desses cães que cabem numa bolsa de madame, cheios de frufru, a mulher não percebeu que tinha mais gente na praça. Assim que minha cadela viu os dois, no entanto, deu um tranco na coleira e brotamos na frente da mulher e de seu animalzinho de meio quilo.

- Olha, Pierre, chegou a amiguinha. Que bonitinha, bem maior que você. Dá bom dia pa ela. – Disse a mulher, fazendo voz de criança.

Fiz um comentário qualquer sobre as orelhas peludas do tal Pierre e da alegria dele ao encontrar outro cão.

- Sabe o que é, moço?! É que eu goto de au-au gande.

Eu estava bem-humorado. Resolvi apostar num diálogo.

- E essa vira-lata aqui adora esses bichinhos pequenos - retruquei.

- Que bom, então, moço. A gente vai se dar bem. Cal o seu nome, miguinha?

Pensei em sair andando, mas os cachorros começaram a se cheirar; ignorei a pergunta, mas ela insistiu:

- Cal o seu nome, minina?

Aquilo começou a me irritar. Não era ela quem falava comigo. Era o Pierre. E, pior, com esse tatibitati terrível.

Já tinha visto essa mulher na rua, sem o cachorro. Loira, cabelo curto, jeitão de executiva. Falava sobre o preço do combustível, sobre as chances de ganhar na Mega Sena, sobre o preço do dólar... Enfim, uma pessoa normal.

Tentei mudar de assunto rápido.

Apelar para o tempo é sempre uma boa saída.

- Será que chove hoje?

- Ai, nem binca, moço. Cando chove, eu num passeio na lua. Adolo passiá na lua, vê outos au-au.

Antes do final da frase, os cães começaram a andar em círculo, se cheirando. Fomos girando junto. Uma cena um tanto ridícula, vista de longe.

De perto, também.

Coleiras enroscadas, confusão armada, nem assim o Pierre deu espaço para sua dona abrir a boca. Puta bicho mal educado.

- Ai, mamãe, me aduda aqui, tá enloscando tudo. Ai, ai, ai...

Mal se viu livre daquela situação constrangedora, o cãozinho foi até um poste, levantou a pata traseira o mais alto que pôde e deixou um recado para os outros cães.

Talvez, pedisse socorro. Algo como “me livrem dessa louca”. Mas, nem pôde se concentrar muito tempo nessa tarefa. Logo nos primeiros jatos, a mulher gritou:

- Ai, que xixizão, Pierre. Que xixizão fóte pá se mostrá pros au-au.

Senti vergonha por ela. É a tal da vergonha alheia, que qualquer adolescente sente 100 vezes por minuto.

Numa última tentativa de humanizar o diálogo, olhei para a mulher, fazendo de conta que o cachorro frufru dela não existia, e perguntei:

- Qual o seu nome?

Para minha surpresa, pela primeira vez, ela me olhou.

Deu uma risadinha misteriosa. Fiquei aliviado.

Teria saído do transe? Caído em si?

Preciso alertá-la que é muito estranho falar o tempo todo como se fosse um cachorro.

Antes que eu começasse o meu sermão, ela escancarou a risada:

- Como assim, moço?! Meu nome é Pierre. Não aquedito que não tinha escutado ainda. O senhor é muito desatento. Palece que nem tá aqui.

Pensei em latir para espantar os dois, mas desisti. Talvez, eu tenha rosnado sem perceber.

Imediatamente, vi o Pierre puxar a coleira e levar sua dona para conhecer outros postes.

E lá se foram os dois, abanando o rabo. O Pierre e aquele outro bichinho loiro, cabelo curto, com jeitão de executiva e que, até hoje, não sei o nome. 

sábado, 15 de setembro de 2012

Manual do Candidato

Tenho que confessar uma coisa: gosto de assistir ao horário político.

Respeito quem diz que não vai ficar perdendo tempo com esse bando de safados, mas, você que é candidato, saiba que tem a minha audiência.

Em primeiro lugar, porque gosto da tua coragem. Não é para qualquer um dar a cara à tapa e falar tanta coisa inteligente na TV. As pessoas acabam tendo inveja.

Ainda ontem, vi um de vocês dizendo que vai distribuir a renda do pré-sal. Governadores do país todo estão quebrando o maior pau pra ver com quem fica a grana e um camarada de uma câmarazinha de vereadores qualquer vai dar uma canetada e resolver tudo.

Olha que sacada genial!

Mas, sei que nem todos têm essa capacidade de ter boas ideias com a mesma rapidez com que pensam em falcatrua. Campanha criativa não é tarefa fácil.

Mas, fique tranquilo, caro candidato (caríssimo, aliás). Seus problemas acabaram. No manualzinho abaixo, específico para candidatos a vereador, vossa excelência pode abreviar seu calvário. É só seguir a fórmula e esperar pelo dia da posse.

NOME
A definição do nome de campanha é um passo importantíssimo. Em primeiro lugar, esqueça o de batismo. Além de ele não ter o apelo necessário para enfrentar o violento jogo das urnas, é bom guardá-lo limpo para o caso de precisar fugir.

É preciso ter um lugar de origem, com o qual se tenha alguma identificação. Você não pode ser simplesmente Paulo, ou Rui, ou Fábio. Tem que ser Paulo, Rui ou Fábio de algum lugar. De preferência, algum lugar popular.  Farmácia, PS, lotação, banca, sacolão...

Atente também aos diminutivos. Eles dão uma boa ajuda. Paulinho da Banca é bem melhor que Paulo qualquer coisa. E o que dizer de Fabinho do Sacolão? Perfeito!

Esqueça essa coisa de que o nome precisa passar respeito. Balela. Político precisava ser respeitado na época do seu avô.

Ao escolher o nome, é importante saber que ele deverá ser bom também para as rimas, instrumento importantíssimo em qualquer campanha.

Portanto se você se chamar Ernesto, que rima com honesto, ou Fabinho, que faz tudo direitinho, considere-se com meio caminho andado.

Mas, falaremos desse assunto mais pra frente.

PALAVRAS-CHAVE
É necessário anotar algumas palavras-chave. Aquelas que vão guiar seus 15 segundos de discurso. Como em uma receita de bolo, é importante escolhê-las corretamente, e salpica-las no texto. Anote aí as principais:

- Social
- Comunidade
- Educação
- Saúde
- Oh, Glória!

Essa última é para o caso de você ser um candidato evangélico.

Importante:

Se você for da situação, não se esqueça das palavras “Continuidade”, “Crescimento”, “Confiança” e da mais importante de todas: “Sustentabilidade”.

Se você for de oposição, não pode deixar de fora o “Vergonha”, “Mudança”, “Desconfiança”, “inovação” e a mais importante de todas: “Sustentabilidade”

O DISCURSO
Depois de se apresentar – nada do nome de batismo – lance um “você me conhece”. Provoca uma identificação e fará a pessoa pensar em você. Talvez, seja o único momento em que consiga tal proeza.

Em seguida, lance mão do lugar-comum mais básico de todos: por mais saúde, educação e segurança. É o que todo mundo quer. É como oferecer banana ao macaco, churrasco a gaúcho ou, com todo respeito, propina a vossa excelência. Tá certo, participação nos lucros, como preferir.

Se você for de oposição, dê um jeito de encaixar, logo em seguida, um “Do jeito que está, não pode continuar”.

Se for da situação, saia com um “Precisamos seguir avançando”.

VISUAL
No vídeo, abuse de movimentos, roupas e acessórios que identifiquem sua atividade principal. O Fabinho do Sacolão, por exemplo, estaria com um saco plástico em uma das mãos e algumas frutas na outra.

O discurso poderia ser mais ou menos assim: “Vou mostrar que político não está tudo no mesmo saco. Não sou um banana como a maioria e vou resolver todos os abacaxis dessa cidade. Contra político ladrão, vote Fabinho Sacolão” – nesse caso, pode até suprimir o “do”. Parece que Sacolão é seu sobrenome. Mais popular que isso, impossível.

Reserve os cinco segundos finais de sua aparição para as...

...RIMAS E TROCADILHOS
Ah, essa é uma das partes mais deliciosas. Qualquer um pode tentar. Deve ser rima simples, boba até. Exercite: pegue uma música do Luan Santana ou do Michel Teló e veja como eles fazem.

Não invente de pagar publicitário. É jogar dinheiro fora. Segundo o pessoal de Massachussetts, os melhores trocadilhos e rimas vêm do filho ou sobrinho do candidato.  

Mas, atenção: coloque, no máximo, duas rimas a cada cinco segundos, sob o risco de seu discurso se transformar num repente.

Dica final: mais do que tudo, seja engraçado. Se você nos fizer rir, nosso voto será seu. Não é à toa que alguns dos últimos sucessos nas urnas contam piadas ou são a própria piada, ainda que de mau gosto.

quinta-feira, 16 de agosto de 2012

A cápsula do tempo



Desligou o abajur e, assim que colocou a cabeça no travesseiro, começou:

- Vi uma notícia no jornal da hora do almoço.


Ninguém responde. Depois de alguns segundos:

- Ouviu o que eu falei?

- Hã?

- Por que você tá em silêncio?

- Porque a gente vai dormir. Ia, pelo menos.

- Vi uma notícia na TV.

- O que tem?

- Dizia que acharam uma cápsula do tempo.

- Legal.

- Não quer saber o que é uma cápsula do tempo?

- O que é uma cápsula do tempo?


A pergunta soou cínica. Ficaram calados.

- Você podia, pelo menos, fingir mais interesse nas coisas que eu digo.


E voltaram ao silêncio por mais alguns intermináveis segundos. Depois:

- Lá em 1800 e pouco, alguém colocou um monte de coisa em uma caixa e enterrou.

- Hã?

- A cápsula do tempo.

- O que tem?

- Você não queria saber o que era? Estou te explicando. É uma caixa com várias coisas antigas, jornal, moeda, que alguém enterrou lá em 1800 e pouco.

- Ah, tá. Pra quê?

- Pra alguém encontrar no futuro.

- Ah, tá. E encontraram?

- Foi exatamente essa a notícia que eu vi na TV.

- Coisa mais besta.

Continuaram deitados de barriga pra cima, como se estivessem se estudando. Até que ela tomou a iniciativa:

- O que você colocaria?

- Pode ser qualquer coisa?

- Sei lá? Acho que pode.

- É igual aquilo de “o que você levaria para uma ilha deserta”?

- Claro que não! Você não vai levar nada. Vai mandar para o futuro.

- Tá bom.

- Quer que eu repita?


Ele não responde e ela pensa que pode ter sido estúpida demais. Experimenta:

- Dormiu?

- Não. Tô pensando.

Ela tem certeza de que é mentira e que, na verdade, ele ficou irritadinho. Até que escuta:

- A camisa da Portuguesa!

- Você colocaria uma camisa da Portuguesa na cápsula do tempo?

- É!

- Por quê?

- Porque sou torcedor.

- Mas, por que alguém vai querer saber disso?

- Pra saber que existiu um time dessa grandeza no passado.

- E que o único torcedor mandou a camisa pro futuro?

- Boa noite...

- Por quê?

- Você pergunta, quando eu entro na brincadeira, você não aceita. E ainda tira sarro.

- Não tô tirando sarro. Só queria saber o porquê de mandar uma camisa da Portuguesa pro futuro. Mas, tudo bem. Já explicou.

Silêncio profundo. Depois de um tempo:

- Insiste na camisa da Portuguesa?

- Insisto.

- E o que mais?

- Tem que ter mais?

- Já que você quer mandar algo para o futuro, aproveita a viagem.

- Colocaria um celular.

- Pra quê? Pra mostrar como os torcedores da Portuguesa se comunicavam em 2012?

- É.

- Muito óbvio.

- Já sei. Eu colocaria uma foto sua, escrito atrás: “por quê?”

- Por quê?

- Pro pessoal de Massachusetts estudar esse fenômeno. É impressionante. Tudo você pergunta por quê!


Ela parece ter sentido o golpe. Levou algum tempo para se recuperar. Quando conseguiu, veio com essa:


- Não quer saber o que eu levaria?

- Pode ser.

-‘Pode ser’? Tá irritado comigo?

- Não. Só estou ficando com sono.

- Você dormiu à tarde, não devia estar com sono...

- O que você levaria? – fala ele rapidamente, para cortar a investida dela.

- Talvez, um relógio. Um relógio e uma esponja de lavar louça.

- Não acredito que você contou essa história toda de cápsula do tempo só pra dizer que eu não lavei a louça do domingo?

- Só? Se você acha pouco, posso colocar na minha caixa do tempo o pote d’água do cachorro e uma sacola de lixo.

- Desculpa, eu esqueci...

- Lembrei de outra coisa que eu colocaria na minha cápsula do tempo. Uma foto sua. Escreveria atrás: “Esqueci” e “só por isso?”.

- Pra que isso?

- Pra lembrar pras mulheres do futuro que, no passado, tinha cara folgado assim igual você.

- Como assim?

- Simples assim.

- Mas, em que futuro?

- Futuro... Pra frente... Em breve...

- O que você tá querendo dizer com isso?

- Que, no futuro, não vai ter mais espaço pra cara folgado igual você.

- Como assim não vai ter espaço? Por que você tá falando essas coisas? O que você tá querendo dizer?

- Nossa, quanta pergunta... Tá me dando um sono danado – termina a frase e ensaia um bocejo.

- Sono por quê? Não vai me deixar falando sozinho, né?!


Ele adivinhou. Ela se vira para o lado de fora da cama e ensaia um ronco. Volta, de repente:

- Tava pensando aqui, podia mandar sua foto pro pessoal de Massachusetts também. Pra eles estudarem alguns fenômenos como a audição seletiva e o esquecimento temporário.


Antes de ele pensar em responder, ela já ensaiava o ronco novamente.


Como num suspiro derradeiro, ele tenta a última cartada:

- Te amo!

Ao que recebe o golpe de misericórdia:

- Por quê?


Nocaute!

sexta-feira, 15 de junho de 2012

Crônica universitária


Encostou no balcão, mas não falou nada.

Aproximou o polegar do indicador, mostrando o tamanho da dose, e foi rapidamente entendido.

Em alguns segundos, o garçom apareceu com uma garrafa.

Ele reagiu:

- Nem vem com isso... Esse negócio de pinga universitária não é comigo, não.

- Pinga universitária, seu Juca?

- É essa coisa docinha que vocês começaram a fazer agora. Parece até que já vem com mel e limão pra descer mais facinho.

E, de repente, mesmo sem saber, meu filósofo de boteco preferido jogou uma luz de sabedoria sobre o balcão daquele bar.

Universitário!

Porque as coisas vêm se chamando assim de uns tempos pra cá, eu não sei; mas sabemos muito bem o que significa.

Tudo que ganha uma versão docinha, que desce macio pode ser chamado de universitário.
                                  
Quando eu era criança, a gente chamava essas coisas de café-com-leite.

Arrastei meu copo para perto do Juca e pedi que falasse mais sobre o assunto.

- Veja você, rapaz, pinga sempre foi coisa de bêbado, de pudim de cachaça. Agora, tem umas mais docinhas que batida. De pinga, só o nome.

        - Interessante.

- E o que fizeram com a música sertaneja? A coisa começou lá com a música caipira, que essa molecada aí acha que é brega, que dá sono. Se esse pessoal escutar Tonico e Tinoco, vai gargalhar, debochar. Mas, aí, colocaram um sonzinho mais moderno, letra fácil, guitarrinha, calça apertada, e passaram a tocar em festa e rodeio.

Fiquei pensativo. Ele tinha razão. Arrisquei:

- Seguindo sua lógica, posso dizer que a comédia standup é uma espécie de teatro universitário?

- Como assim?

- É uma versão docinha do teatro de verdade. Ninguém tem saco mais pra ver Shakespeare, Moliére ou Nelson Rodrigues. Dizem que é pesado, complicado, demorado, tem que ficar pensando. Então, criaram um jeito de continuar indo ao teatro só que pra ver uma coisa rapidinha, que não precisa pensar muito. Vão ao teatro, porque é chique, mas deixaram de lado a parte chata, que são as peças.

Juca terminou o gole, passou a língua nos lábios e balançou a cabeça pra cima e pra baixo, aprovando a teoria.

Outro cara empurrou seu copo para perto e entrou na conversa.

- E esse açaí que vocês comem aqui, em São Paulo? Coisa mais estranha. Lá no Pará que é açaí de verdade, com a fruta mesmo. Onde é que já se viu açaí doce? Isso que se come aqui é sorvetinho.

- É o açaí universitário! – cravou Juca, sem disfarçar a empolgação.

- Isso mesmo. Pegaram a parte boa, que é dizer que é da Amazônia, e deixaram tudo bem docinho, que é pra vocês aqui conseguirem comer.

Ficamos tão encantados com a nossa filosofia de botequim, que experimentamos o silêncio por alguns minutos.

Renovamos a dose e aproveitei para pensar em outras coisas que poderiam ganhar uma versão docinha.

Que tal o baile funk universitário?

Todo aquele climão, mas tudo café-com-leite. Músicas sem palavrão, sonorização de tiroteio a cada 15 minutos e de sirene a cada duas horas, e encenação com atores fortemente armados cruzando o salão a cada 45 minutos.

Tudo na maior segurança. Uma vez por mês, poderiam organizar até uma briga de gangues pra coisa ficar bem real.

Sei que nem todos os bailes funk são assim, mas é assim que as pessoas imaginam e uma das características das versões café-com-leite é abusar dos clichês que já caíram no gosto do grande público.

Posso ver até seu Juca explicando: “Pegam a fama exótica da coisa e jogam fora sua essência. Pasteurizam a ponto de ficar igual a tudo que já foi consumido antes. Tudo pra não correr risco de rejeição”, diria ele, com seu português exemplar.

Outra coisa ‘feia’, mas que poderia se transformar em ‘bonitinha’ para ganhar os corações e o bolso da molecada cheia da grana é a rinha de galo.

Galos de pelúcia comandados por controle remoto (pra ninguém ver sangue e correr o risco de passar mal), bolsa de apostas virtuais acessadas de celulares ultramodernos, e até algumas encenações da chegada da polícia para elevar o nível de adrenalina da rapaziada.

No final, ao som de um sertanejo universitário qualquer, o vencedor poderia até dar um trago na pinga universitária do Juca.

Sem esquecer, é claro, de tomar um açaí universitário antes de cair no sono em sua cama quentinha.

Ao olhar para o balcão, percebo que Juca se foi. Sua passagem pelo bar é cada vez mais rápida.

Dou uma olhada geral.

Um autêntico risca-faca, mas com mesas cheias de menininhas arrumadinhas, pingas universitárias nas mesas e, na TV, uma luta-livre cheia de glamour.

Logo logo, colocam segurança na porta e cobram consumação mínima.

Até o boteco sujo do seu Juca está virando café-com-leite.

Do outro lado do balcão, o dono sorri feliz da vida.

Compreendo o Juca.

Mato a dose e peço a conta.

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Vem Kafka Comigo

Veio meio que escondida entre a prateleira de bestsellers e a de livros espíritas e chamou a outra quase sussurrando.

- Mãe.

Sem resposta.

A outra continuou procurando algo na seção de autoajuda.

Insistiu:

- Mãããããããe.

- Ooooi – respondeu a mulher quase gritando. Sem nem virar o pescoço.

- Descobri um negócio – continuou a sussurrar a primeira.

- O quê?

Olhou para os lados, deu uns dois passos à frente e soltou:

- Kafka é o nome do autor, não o nome do livro.

Mesmo falando baixinho, não teve jeito. Umas três pessoas olharam pra ela querendo rir.

A mãe fez uma cara inenarrável de deboche, que só a arrogância senil é capaz de produzir. Na careta, ela disse: “você não tem noção da besteira que está falando sua idiota quando você está indo eu já estou voltando e agora tenho que ficar aqui ouvindo essas besteiras de uma analfabeta feito você”

Assim, tudo junto mesmo. Sem ponto ou vírgula. Numa careta só.

Embora a mãe tivesse lançado mão de um clássico no mundo das caretas, a filha não entendeu.

- O que foi?

- Você tá louca?

- Por quê?

- Nome do autor?

- É

- Eu vi muito bem. Não sou burra. Sei ler muito bem. Já li muito mais livros do que qualquer um aqui...

- Não to falando isso.

- Então, dá licença.

E saiu em busca de um atendente.

- Ô, mocinho.

- Pois não.

- Eu estou procurando um livro, você pode me ajudar?

- Claro. Qual o nome dele?

- É Kafka.

- Certo. Qual deles?

- Como assim, qual deles? Tem vários livros com o mesmo nome?

- Não, digo qual livro do Kafka a senhora quer? – E soltou uma risada um tanto nervosa, como que esperando confusão.

- Acho que você não entendeu direito: quero um livro chamado Kafka. Um romance!

- Perdão, minha senhora, mas Kafka é o nome de um escritor, e não do livro. Temos até um livro chamado Kafka, mas não é um romance. É um ensaio sobre a obra do escritor Kafka.

- Escritor? Ensaio? Impossível. Quero que você me chame o gerente agora.

- Mas, por quê?

- Por favor... O gerente...

Ele virou para dentro da loja e fez um sinal para chamarem o superior.

Enquanto o gerente não vinha, foi escutando um pouco da larga experiência da cliente.

- Você sabe quantos livros eu leio por mês, rapaz? Leio um por semana, garoto. Você sabe ler?

- Sei, sim senhora.

- Sabe nada. Já leu Violetas na Janela? Já leu Verônika Decide Morrer? Lê e depois vem falar comigo... Essa juventude de hoje precisa aprender a respeitar os nossos cabelos brancos. Bom mesmo era no meu tempo, que os jovens liam. Todos liam. Agora, alguém da minha idade não vai saber o que é o nome do autor e o nome do livro. Li lá na capa do livro: “Kafka”

Aparece o gerente.

- Ah, que bom que o senhor chegou. Queria fazer uma reclamação contra esse mocinho aqui.

- O que aconteceu?

- Ele me ofendeu.

- O que ele fez?

- Me chamou de ignorante.

- Só falei pra ela que Kafka era o nome de um escritor e não de um livro.

- Impossível, meu rapaz. Eu não sou idiota. Li muito bem na capa do livro: “Kafka”.

- Perdão, minha senhora. Ele está certo, Kafka é o nome do autor.

- Mas, será possível?!... Estão achando que sou idiota. Não tem ninguém mais experiente pra falar comigo, não?

O gerente logo sacou um livro e mostrou a ela a ficha técnica.

- Veja aqui esse livro, minha senhora. O título dele é O Processo. O nome do autor é Kafka. Franz Kafka.

- Kafka?

- Sim. Kafka.

Muita gente de olho na cena. Parou e procurou a filha. Nada. Há muito tempo estava na calçada, torcendo pra ninguém ter visto as duas juntas.

A mulher nem agradeceu. Deu às costas ao gerente, ao atendente, ao Processo, ao Kafka, e foi andando calmamente, sem mostrar nem um pingo de vergonha. Talvez, no fundo, no fundo, ainda achando que estava certa.

Cabeça erguida, olhar no horizonte. Deve ter aprendido em algum autoajuda. Ia murmurando alguma coisa.

Na porta, viu uma daquelas estantes giratórias com vários livros de bolso. Não é que lá estava um A Metamorfose, do mesmo Kafka?! Parecia que estava lá pra tirar sarro dela.

Reduziu o passo e olhou firme.

- Kafka... Kafka... Isso lá é nome de gente.

E num gesto rápido e certeiro se vingou.

Puxou o Kafka pela orelha e jogou-o no chão, mostrando todo o ódio que sentia por essa juventude burra e iletrada.

E saiu da loja pisando firme, quase marchando.