No shopping, puxei o livro da mochila e percebi que estava sendo observado. Mal virei a primeira página e ela se aproximou. Devia ter uns 20 anos. Ficou se contorcendo, tentando ler o nome que estava na capa. Conseguiu:
- Ai, que legal...
- O que?
- Ele tem livro?
- Como assim?
- O Caio tem livro...
- Que Caio?
- Esse que você tá lendo...
- Tem... vários... um dos maiores escritores do Brasil...
Ela não acreditou muito.
- Caramba... achei que ele era só o cara do Face.
- Cara do... ?
- Face... Facebook... internet... cê tem, né?!
- Tenho, tenho...
- Ele também.
- Quem?
- O Caio... tem um perfil todo fofo... Ele escreve cada coisa bonita.
- O Caio?
- Claro, pô. Não é dele que a gente está falando?!
- É que é impossível ele ter perfil.
- Por quê?
- Ele morreu...
- Impossível ele ter morrido!
Chegamos num impasse. Ela virou para o outro lado, como que digerindo a informação. Depois de um tempo, indignada:
- E quem atualiza o perfil dele, então?
- Ele é que não é.
- Cê ta brincando... não deve ser o mesmo... morreu de quê?
- AIDS.
- AIDS??? Então, ele era velhão?
- Velhão?
- É, ué! AIDS não é aquele negócio que dava nos anos 80?
Novamente, um impasse. Dessa vez, eu é que virei para o outro lado para digerir a informação.
- Lê um pedaço aí pra mim.
- Qualquer um?
- É.
- Lá vai: “Aquele negrão, sabe aquele negrão de cabelo rastafári que fica sempre ali no Quênia’s Bar? Aquele que vende fumo, diz que tem vinte e cinco centímetros, já pensou? Isso não é uma jeba, é uma jibóia. Até vinte agüento numa boa, até o cabo. Vinte e cinco não sei, tenho até medo. Pode rasgar a gente por dentro, sei lá”. *
- Ele escreveu isso?
- Sim.
- O Caio?
- Claro, pô. Não é dele que a gente está falando?!
Ela se levantou, indignada:
- Ele escreve coisas fofas, não isso aí. Ele fala de amor, esperança, sorriso. Coisas pra valorizar a gente. Ele tem frases que se encaixam em todos os momentos da vida da gente.
- Isso é Minutos de Sabedoria, não Caio Fernando Abreu.
- Minutos de quê?
Reparei que outra garota tinha se aproximado. Resolveu entrar na conversa:
- Que foi?
- O cara aí ta dizendo que conhece o Caio.
- Que Caio?
- O do Face!
- Ah, tá... prefiro a Clarissa...
- Que Clarissa?
- Ah, sei lá. Acho que é Espectro.
- Não é Clarissa, é Clarice, sua burra!
Começaram a tirar sarro uma da outra e se foram sem dar tchau.
Da próxima vez que estiver em público, puxo um Dostoiévski.
Duvido que ele também tenha perfil fofo no Face.
* O trecho foi extraído de uma frase da personagem Jacyr, do livro Onde Andará Dulce Veiga?, publicado em 1990