De manhã cedo, à porta de casa, veio a mulher com um pacotinho:
- Toma isso aqui que é bom. É bicarbonato. Passa na língua que é tiro e queda. Controla a acidez.
Uma afta na língua estava lhe tirando o sono e também a paciência. Era uma segunda-feira e, como toda segunda-feira, estava irritado. Trabalhava há poucas semanas (duas para ser mais exato) num escritório no centro da cidade, mas além do sono atrasado devido à eventual farra do final de semana, a já citada afta e um conjunto de alergias eram os responsáveis pela súbita sensação de infelicidade. Tudo quanto era tipo de alergia, aquele homem trazia com ele. Bronquite, rinite e mais uma porção de nomes que tinham como principal característica, senão o fato de derrubá-lo, o irritante final “ite”. Pensou que só os nomes das alergias eram capazes de irritar qualquer um.
Tinha ainda uma mania que agravava seu quadro alérgico: gostava de sentir o cheiro de tudo que lhe passava nas mãos. “Vieira, passa esse documento por fax”, lá ia ele cheirar o documento. “Vieira, vamos a uma livraria sebo”, lá ia o nariz apontado para os livros empoeirados. “Vieira, dá uma olhadinha no jornal”, lá estava ele cheirando a página policial.
“Vieira, por que tá cheirando isso?”, lá vinha a vergonha, seguida de espirros. Parecia um maníaco.
Meio descrente da eficácia do produto, deu um beijinho de leve na mulher e colocou o bicarbonato no bolso da camisa, onde ficou esquecido até que Vieira metesse a testa no teclado do computador, transtornado pela ardência na língua. Percebeu que não tinha outro jeito. Certificou-se de que o pacotinho ainda estava lá, levantou-se e pôs-se a andar lentamente, a caminho do banheiro. Passou pela mesa de dois companheiros que o encararam e perceberam que algo estava errado. Vieira suava, olhos fixos e, poderíamos dizer, que nem tinha reconhecido os companheiros, não fosse um leve menear com a cabeça, dirigido ao centro da sala.
Entrou no banheiro. “Essa porta que não fecha”, resmungou sem usar a língua. Sem ter o controle das mãos, que tremiam insistentemente, tirou o pacotinho do bolso da camisa e abriu-o em cima da pia. A velha mania: cheirar o pacote, sob a desculpa de que precisava saber o que colocaria na língua.
Um grito:
- Virgê Maria. O seu Vieira é um drogado!
Olhou para a porta entreaberta. Pela fresta, enxergou a faxineira, com os olhos esbugalhados e as duas mãos na boca, escandalizada. Virou-se para o espelho e viu o tal Seu Vieira, tampando uma das narinas com o dedo e de frente para uma carreirinha de pó branco. Quis dizer: “não é nada disso”, mas soltou uns grunhidos, que era o que era possível àquela hora. Foi abrir a porta e deu com a faxineira no final do corredor, gritando como uma louca:
- Segura o drogado. O seu Vieira tá drogado!
Atrás da faxineira, correndo, soltando grunhidos e mordendo a língua de raiva, vinha o Vieira. Quando chegou à sala principal, viu um dos companheiros em cima da cadeira, o outro preparado para a briga e a faxineira no canto da porta, vassoura em punho.
- Tá louco, Vieira. Deixa a Dirce em paz! - disse o que estava pronto para a briga.
- É isso aí, deixa ela em paz - imitou o outro.
- Maeuumsoogado - foi o que resmungou o Vieira, querendo dizer: “Mas eu não sou drogado”.
- Ele tá completamente drogado, gente.
Vieira sacudiu a cabeça de um lado ao outro, querendo dizer que não estava drogado. Desesperado, mostrou o pacotinho para os três, na esperança de que algum deles entendesse que aquilo era bicarbonato.
- É cocaína!!! – gritaria.
- Meu Deus, o que é isso?
- Ébicaoato - quis dizer que era bicarbonato, mas entenderam: “Eu te mato”
- Matar por quê, o que eu te fiz?
- Segurem o Vieira!
- Peguem o drogado! - gritou a faxineira, erguendo a vassoura e partindo pra cima do alérgico Vieira.
A cena se assemelhava àquelas brigas de desenho animado: sobe a poeira e ora vemos um braço, ora uma perna, ora uma vassoura. Foi vassourada, murro, pontapé. Acabaram com o Vieira. Ficou ele no chão do escritório, com o braço da faxineira dando a volta em seu pescoço, apertando-o na popular ‘gravata’.
Mesmo depois que descobriram que o pó branco era bicarbonato e que Vieira era um alérgico e não um drogado, largaram em cima da mesa dele uma cartinha de demissão por justa causa.
- É melhor assim, vai que ele resolve se vingar. Nunca se sabe o que se passa na cabeça de um alérgico.
* Texto publicado no livro Blônicas 2 - A vez dos leitores
- Toma isso aqui que é bom. É bicarbonato. Passa na língua que é tiro e queda. Controla a acidez.
Uma afta na língua estava lhe tirando o sono e também a paciência. Era uma segunda-feira e, como toda segunda-feira, estava irritado. Trabalhava há poucas semanas (duas para ser mais exato) num escritório no centro da cidade, mas além do sono atrasado devido à eventual farra do final de semana, a já citada afta e um conjunto de alergias eram os responsáveis pela súbita sensação de infelicidade. Tudo quanto era tipo de alergia, aquele homem trazia com ele. Bronquite, rinite e mais uma porção de nomes que tinham como principal característica, senão o fato de derrubá-lo, o irritante final “ite”. Pensou que só os nomes das alergias eram capazes de irritar qualquer um.
Tinha ainda uma mania que agravava seu quadro alérgico: gostava de sentir o cheiro de tudo que lhe passava nas mãos. “Vieira, passa esse documento por fax”, lá ia ele cheirar o documento. “Vieira, vamos a uma livraria sebo”, lá ia o nariz apontado para os livros empoeirados. “Vieira, dá uma olhadinha no jornal”, lá estava ele cheirando a página policial.
“Vieira, por que tá cheirando isso?”, lá vinha a vergonha, seguida de espirros. Parecia um maníaco.
Meio descrente da eficácia do produto, deu um beijinho de leve na mulher e colocou o bicarbonato no bolso da camisa, onde ficou esquecido até que Vieira metesse a testa no teclado do computador, transtornado pela ardência na língua. Percebeu que não tinha outro jeito. Certificou-se de que o pacotinho ainda estava lá, levantou-se e pôs-se a andar lentamente, a caminho do banheiro. Passou pela mesa de dois companheiros que o encararam e perceberam que algo estava errado. Vieira suava, olhos fixos e, poderíamos dizer, que nem tinha reconhecido os companheiros, não fosse um leve menear com a cabeça, dirigido ao centro da sala.
Entrou no banheiro. “Essa porta que não fecha”, resmungou sem usar a língua. Sem ter o controle das mãos, que tremiam insistentemente, tirou o pacotinho do bolso da camisa e abriu-o em cima da pia. A velha mania: cheirar o pacote, sob a desculpa de que precisava saber o que colocaria na língua.
Um grito:
- Virgê Maria. O seu Vieira é um drogado!
Olhou para a porta entreaberta. Pela fresta, enxergou a faxineira, com os olhos esbugalhados e as duas mãos na boca, escandalizada. Virou-se para o espelho e viu o tal Seu Vieira, tampando uma das narinas com o dedo e de frente para uma carreirinha de pó branco. Quis dizer: “não é nada disso”, mas soltou uns grunhidos, que era o que era possível àquela hora. Foi abrir a porta e deu com a faxineira no final do corredor, gritando como uma louca:
- Segura o drogado. O seu Vieira tá drogado!
Atrás da faxineira, correndo, soltando grunhidos e mordendo a língua de raiva, vinha o Vieira. Quando chegou à sala principal, viu um dos companheiros em cima da cadeira, o outro preparado para a briga e a faxineira no canto da porta, vassoura em punho.
- Tá louco, Vieira. Deixa a Dirce em paz! - disse o que estava pronto para a briga.
- É isso aí, deixa ela em paz - imitou o outro.
- Maeuumsoogado - foi o que resmungou o Vieira, querendo dizer: “Mas eu não sou drogado”.
- Ele tá completamente drogado, gente.
Vieira sacudiu a cabeça de um lado ao outro, querendo dizer que não estava drogado. Desesperado, mostrou o pacotinho para os três, na esperança de que algum deles entendesse que aquilo era bicarbonato.
- É cocaína!!! – gritaria.
- Meu Deus, o que é isso?
- Ébicaoato - quis dizer que era bicarbonato, mas entenderam: “Eu te mato”
- Matar por quê, o que eu te fiz?
- Segurem o Vieira!
- Peguem o drogado! - gritou a faxineira, erguendo a vassoura e partindo pra cima do alérgico Vieira.
A cena se assemelhava àquelas brigas de desenho animado: sobe a poeira e ora vemos um braço, ora uma perna, ora uma vassoura. Foi vassourada, murro, pontapé. Acabaram com o Vieira. Ficou ele no chão do escritório, com o braço da faxineira dando a volta em seu pescoço, apertando-o na popular ‘gravata’.
Mesmo depois que descobriram que o pó branco era bicarbonato e que Vieira era um alérgico e não um drogado, largaram em cima da mesa dele uma cartinha de demissão por justa causa.
- É melhor assim, vai que ele resolve se vingar. Nunca se sabe o que se passa na cabeça de um alérgico.
* Texto publicado no livro Blônicas 2 - A vez dos leitores